O diretor e dramaturgo Rodrigo Portella tinha acabado assistir ao espetáculo “Um Molière Imaginário”, do grupo Galpão, quando leu “Ensaio Sobre a Cegueira”, de José Saramago, pela primeira vez, cerca de 25 anos atrás. A conexão mental entre grupo e obra foi imediata.

“Caramba! O romance do Saramago daria uma peça foda, mas que deveria ser feita por um grupo como o Galpão”, relembra-se do que pensou à época. Envolvido com a adaptação para o teatro de “A Cartomante”, livro de Machado de Assis, a ideia ficou guardada nos recônditos da memória, e ele nunca mais pensou naquilo.

Mas os deuses do teatro organizaram o destino de modo de não morrer uma ideia como aquela. Acontece que, em abril de 2023, calhou de dois espetáculos de Portella estarem em cartaz em um mesmo fim de semana em Belo Horizonte, o “Ficções”, monólogo de Vera Holtz, e “Tom na Fazenda”, espetáculo protagonizado por Armando Babaioff.

Era exatamente o que faltava para acordar a ideia adormecida. “Consegui um telefone da Inês (Peixoto) e do Eduardo (Moreira) e mandei mensagem para dois convidando para irem assistir ao espetáculo. Eu disse: ‘tem convite para o grupo todo, queria muito que vocês fossem”, relembra. 

Eles toparam. No fim de semana seguinte, o grupo convidou Portella para um café na sede do Galpão, no Horto. “Fui, e, quando cheguei lá, eles brincaram: ‘Rodrigo, o grupo se chama Galpão, mas você caiu no ‘golpão’. Você veio tomar um café, mas, nós, na verdade, queríamos te chamar para dirigir um espetáculo nosso.’ Aí, eu respondi: ‘vocês estão enganados, porque o primeiro golpe foi meu. Já queria dirigi-los, e por isso chamei vocês para assistirem aos espetáculos.’ Foi um contragolpe”, relembra Portella, entre risos.

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Júlio Maciel e Inês Peixto estão em novo espetáculo do Galpão.

Foto: Tati Motta/divulgação

Assim que as conversas entre ele e grupo começaram, a lembrança passada de Portella surgiu como “um novelo de lã, que você puxa assim”, fala, fazendo um gesto com as mãos. “E veio toda a imagem de ter lido o romance de Saramago, em 1998. Então, propus a eles que fizéssemos uma adaptação da obra”, diz.

O grupo adorou a ideia. Juntos, eles montaram “(Um) Ensaio Sobre a Cegueira”, espetáculo que estreia na próxima quarta-feira (30) e segue em cartaz até o próximo 1º de junho, no Galpão Cine Horto, com sessões de quarta a domingo. Os ingressos já estão à venda. Quem for assistir ao espetáculo pode escolher por acompanhar no palco ou participar de uma experiência com uso de vendas. 

O diretor justifica sua escolha do Galpão pelo caráter da obra-prima de Saramago. “Só um grupo como o Galpão poderia encenar um romance como esse. Além das múltiplas camadas, o que mais me marca é a provocação que Saramago faz sobre o senso de comunidade, algo que fomos perdendo ao longo da história, especialmente na era moderna e contemporânea. Para mim, essa é a questão central do livro. E para falar de comunidade, grupo, coletividade, era preciso um grupo que encarnasse isso como o Galpão. Foi isso mesmo que pensei na época”, relata.

Para montar o espetáculo, Portella optou por uma dinâmica em que os atores assumem simultaneamente os papéis de narradores e intérpretes, um “formulador”, como o diretor prefere chamar. Isso significa que, em cena, eles não apenas vivem os personagens, mas também descrevem as ações, criando uma camada narrativa que se entrelaça com a representação.

“É inegável o caráter ensaístico do ‘Ensaio Sobre a Cegueira’. Em muitos momentos, não se sabe exatamente quem está falando, se é o autor, o narrador ou o personagem, porque não há pontuação convencional, como travessões. Essa indefinição entre vozes faz parte da proposta. Para mim, esse aspecto deveria estar presente na encenação”, aponta. 

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Plateia pode escolher experiência imersiva com o grupo.

Foto: Tati Motta/divulgação

“Fui entendendo que temos três camadas distintas: o personagem que vive a ficção, o narrador que formula e constrói essa história como parte de um jogo, e o ator-performer, que está ali, em sua função mais exposta. A encenação já começa estabelecendo esse pacto: o público entra e vê o teatro completamente vazio, sem cenários, sem panos, sem ambientação. Não há manicômio, nem casa do primeiro cego, nem carro: nada será mostrado de forma literal. Tudo será construído na imaginação. Lembro de algo que o diretor francês Denis Guénoun disse e que me marcou muito: ‘o teatro não acontece no palco, nem na cabeça do espectador; ele acontece no encontro dos imaginários.’ Isso é muito poderoso, e foi nisso que apostei neste espetáculo”, resume.

'Formulador-ator' em cena

Assumir o papel de “formulador-ator” foi um desafio e tanto para a atriz Fernanda Vianna. Na montagem, ela interpreta a “mulher que enxerga”. “Foi muito difícil, porque o tempo inteiro o texto te puxa para fora da história. E, quando estou em um personagem, gosto de entrar vertiginosamente nele. Mas quando começamos a nos encontrar, sentimos algum prazer”, conta. Para conseguir alcançar o que pensou Portella, houve muito diálogo entre o diretor e o grupo. 

“Foram muitas reuniões, de forma virtual, mas com trocas intensas. Quando ele chegou, já trouxe a dramaturgia praticamente pronta, com o texto definido e uma visão muito clara do que queria. É um diretor jovem, mas extremamente corajoso e experiente. Sabia que precisaríamos apanhar um pouco, errar, tentar de novo, enfrentar dificuldades. E ele lidava com isso com muito respeito. É um artista talentoso, afetuoso e generoso. Isso marcou muito o processo”, conta a atriz. 

Fernanda, aliás, teve a oportunidade de conhecer Saramago pessoalmente durante o lançamento do livro “A Caverna”, no Palácio das Artes, em Belo Horizonte, no ano 2000. “Fui a narradora do evento, depois jantei com ele, que autografou meu livro. Tive esse grande prazer! Saramago não foi apenas um grande escritor, mas também um ser humano profundamente político”, relembra.

Ainda assim, ela afirma que a percepção mais marcante sobre o autor não veio do encontro, mas de algo que ele escreveu sobre sua personagem. “Saramago conta que, até o momento em que a mulher é levada para a ambulância, não sabia se ela ficaria cega. Mas, à medida que escrevia, entendeu que ela precisava continuar enxergando, porque a mulher é o elemento transformador da história, uma vez que vê os outros no sentido de compreendê-los”, destaca.

Para Eduardo Moeira, a proposta de Rodrigo Portella também se apresentou desafiadora. “É um jogo cênico que ainda estamos explorando, tateando, entendendo aos poucos. Ainda precisa de mais fluidez, mais precisão, para que essas transições entre formas aconteçam com naturalidade, com inteligência e percepção refinada. Mas é, sem dúvida, um jogo profundamente teatral, e estamos nos dedicando a realizá-lo. Acredito que estamos no caminho certo. Como todo bom projeto teatral, é um grande desafio: compreender, dominar e, acima de tudo, compartilhar essa experiência com o público”, aponta.

Além de Fernanda e Eduardo, o espetáculo “(Um) Ensaio sobre a Cegueira” traz no elenco boa parte da trupe do Galpão, como Antonio Edson, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Luiz Rocha, Lydia Del Picchia, Paulo André e Simone Ordones. Em cena, eles também tocam e cantam a trilha original feita por Federico Puppi, parceiro antigo de Rodrigo Portella.

“A música funciona como um texto que complementa o que se vê em cena. E pensar música em um espetáculo sobre cegueira é muito potente, porque ela não exige visão para ser sentida e nos insere no presente de forma imediata. Nesse contexto, a música constrói dramaturgia. Ela fala, dá corpo à narrativa, faz o texto acontecer. Esse foi o grande acerto do Federico: criar uma trilha que participa ativamente da contação da história”, analisa Moreira.

SERVIÇO

O quê. Espetáculo “(Um) Ensaio Sobre a Cegueira”, do grupo Galpão

Quando. De quarta-feira (30 de abril) a 1º de junho

Onde. Galpão Cine Horto (Rua Pitangui, 3.613, Horto)

Quanto. Entre R$ 17 (valor promocional) e R$ 80 (inteira), pelo Sympla