A mesma ideologia de grupos internacionais que patrocinam mundo afora a reemergência do neonazismo e de outros grupos de extrema direita – que propõem a ruptura da ordem democrática institucional e o desmanche do multilateralismo – fundamentam parte do governo de Jair Bolsonaro (sem partido).

A avaliação é de Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, demitido do cargo em 16 de abril de 2020 quando as mortes por COVID-19 se aproximavam de duas mil. O motivo da demissão foi a discordância de Bolsonaro com as diretrizes ao enfrentamento indicadas pelos especialistas, — como o isolamento social; e também, porque Mandetta se recusou a adotar a cloroquina de maneira generalizada para o tratamento da COVID-19.

Ao acompanhar os bastidores desse embate entre, de um lado a racionalidade, a ciência e, de outro, os adeptos da retórica charlatã focada num projeto disruptivo, Mandetta conclui: “ O Brasil, hoje, é administrado pela internet e por pessoas que não fazem parte do governo. O Brasil está sendo administrado pelo algoritmo”, afirma ele, ao Estado de Minas.

“Fui chamado para fazer um trabalho técnico, e montei uma equipe técnica. Em 2019, nem entrevistas dava. Em 2020, tive que me expor. O que percebo é que há um núcleo militar, de boa formação e boas intenções, mas que, quando mostra-se o caminho da racionalidade e da boa governança, existe em paralelo ao mundo militar um entorno do presidente. E existe um mundo que desconhece — e até agride o núcleo militar. É onde estão os filhos e o que é comumente chamado de gabinete do ódio, mas frequenta (o Planalto) de dentro da sala (do presidente)”, considera.

O uso das redes sociais, com o auxílio dos algoritmos e estratégia retórica sofisticada, explorando as predisposições individuais, para manipular a informação e construir os fatos alternativos, foi amplamente denunciado por ocasião do Brexit e outros eventos como a eleição de Donald Trump. De forma análoga, vem sendo utilizado no Brasil.

“Não é uma coisa ao acaso; é algo fundamentado, que Trump fez nos Estados Unidos e Bolsonaro faz aqui. Teve o Brexit como pano de fundo e está na reemergência de movimentos neonazistas e extremos, que propõem a ruptura absoluta da sociedade e um desmanche do multilateralismo e da tentativa da humanidade de ter um caminhar mais sólido e que se aproveita de toda situação para minar toda e qualquer instituição, colocando tudo em descrédito”, afirma Mandetta.

Sem qualquer compromisso com a democracia, os defensores desta ideologia que tem em Olavo de Carvalho, no Brasil, um dos disseminadores, não se importam se o desfecho for uma ditadura. “Se isso vai terminar em um estado democrático ou ditatorial, na cabeça deles, tanto faz. Se for ditatorial, para eles, melhor. É um risco absurdo que há no mundo. Há grande acesso à informação pelas redes sociais, mas no lado de trás do balcão estão pessoas especializadas em manipular o pensamento. Quem comanda o Brasil hoje é uma banca de internet”, assinala Mandetta.

O ex-ministro é uma das figuras que têm sofrido ataques virtuais por conta das posições contrárias às ideias do governo Bolsonaro.

Armamentos

A obsessão do governo Jair Bolsonaro em disseminar o uso de armas no Brasil está dentro deste contexto. “O país pode entrar em uma crise armada com proporções muito altas”, afirma Mandetta, em referência ao período pós-pandemia.

“Isso não vai — e não pode — acabar bem. No meio de uma pandemia, aumentar impostos sobre itens da saúde e zerar impostos sobre armas, é passar uma mensagem para que as pessoas se armem. Um país que tem tantas diferenças e iniquidades, que se traduzem em uma violência urbana que acomete tanto o cidadão, isso vai acabar em uma situação de conflito”, afirma Mandetta. “É como se o Brasil estivesse sentado em um barril com álcool e pólvora, e o presidente resolveu fumar charuto. Isso, para explodir, é a qualquer momento”, diz ele.

Considerando que o Brasil sairá da crise sanitária muito mais lentamente do que poderia e precisaria, - e na avaliação dele este será um semestre fúnebre – a partir da vacinação da população, quando o país se reerguer da crise sanitária, haverá a mega crise pós-pandemia. Com o agravante: é esta liderança que considera “tóxica” face à crise da saúde que estará diante das múltiplas dimensões da crise social.

“Essa liderança, tão tóxica na crise de saúde, vai ter que dar respostas à essa mega crise que virá na educação, na cultura, no emprego. Temos um país à beira de uma convulsão se não tivermos uma liderança capaz de mostrar um caminho e um projeto de reconstrução, conciliação e reencontro deste país consigo mesmo. Se apostar ainda mais na pancadaria, na divisão, no ódio e nessa coisa maniqueísta de polarização absoluta e não houver a voz do centro, da moderação, do ‘calma, vamos sair disso juntos’ e inserção internacional, o país pode entrar em uma crise armada com proporções muito altas”, sustenta Mandetta.

Aentrevista

Jornalistas do Estado de Minas conversaram, por vídeo, com Luiz Henrique Mandetta. Entre esta quinta e a sexta-feira, pílulas da entrevista serão publicadas. No domingo, vão ao ar os trechos que tratam de temas políticos, como a disputa eleitoral em 2022.