O Ipea calcula em R$ 36,8 bilhões a economia com um corte de 25% nos salários da administração pública em suas três esferas (federal, estadual e municipal), durante três meses. Se o corte se estender por mais um mês, a poupança beiraria os R$ 50 bilhões, mesmo valor que deverá sair do Tesouro para cobrir rombos nos estados e municípios conforme pacote acordado entre governo e Senado. Ou seja, o socorro era dispensável. Bastaria o corte.

Além desses bilhões, o Tesouro repassaria diretamente aos caixas estaduais e municipais outros 10 bi para ações na saúde. Esses repasses totalizando R$ 60 bilhões vão engrossar o déficit e aumentar a dívida pública, que já está em 78% do PIB antes dos efeitos da pandemia.

Quanto maior o dispêndio na pandemia, maior a fatura a ser paga depois pela população. Se essa fatura continuar subindo sem controle, como ocorre hoje, o endividamento excessivo irá dificultar ou adiar a recuperação da economia, jogando o Brasil numa crise sem saída.

Governo e Congresso poderiam evitar a nova dívida bilionária. Para obter uma folga financeira de 50 bi nos cofres públicos bastaria a redução temporária na folha dos servidores. Seria um corte pequeno; os salários no serviço público continuariam muito superiores aos da iniciativa privada.

Mas a opção foi outra. Bolsonaro e os parlamentares preferiram comprometer o futuro do país com mais rombos e dívidas a encarar o corte de salário dos servidores. Por que essa escolha?

Não é pela lei. Embora a Constituição proíba redução salarial no serviço público, a possibilidade foi aberta por brecha na Lei de Responsabilidade Fiscal, que prevê a medida em situações de crise como agora.

O legislativo não é obstáculo: o presidente da Câmara Federal, Rodrigo Maia, já defendeu publicamente a ideia e a Assembleia Legislativa de São Paulo está para adotá-la. O judiciário resiste, mas pode ser convencido se governo e Congresso apresentarem uma proposta comum. O problema é que nem Bolsonaro nem os parlamentares querem mexer no soldo da farda.

O maior entrave à justa e imperiosa redução na folha salarial do funcionalismo público, que não cabe mais dentro das receitas, é sem dúvida o fator militar. Seria possível poupar a corporação dos cortes. Mas, sobretudo em tempos de depressão econômica e emergência sanitária, não cairia bem favorecer descaradamente as Forças Armadas, já privilegiadas na reforma da previdência.

Bolsonaro receia ser derrubado pelo Congresso, que teme ser fechado por um AI-5 ou golpe do presidente. Ambos os lados veem nos militares o poder moderador ou árbitro da disputa, capaz de definir o jogo. Hoje, nem o presidente nem o legislativo tem culhões para desafiar ou irritar a farda. Ao contrário, não poupam meios para agradá-la. E danem-se as contas públicas.

No jogo Bolsonaro X Congresso ou AI-5 X impeachment, os únicos vencedores por ora são os militares. Eles dominaram a máquina federal. Voltaram a governar o país. E não precisaram levantar um dedo, muito menos uma arma, para a retomada do poder.

Hoje mandam e desmandam sem contestação, blindados pelo medo que inspiram. São dispensados até mesmo de mostrar competência nos cargos; estão acima de críticas e de cobranças. Afinal, são militares. E diante deles tremem todos: presidente, ministros, deputados e senadores, magistrados, procuradores, empresários, jornalistas, etc. Depois de mais de três décadas de eleições, os brasileiros ainda não conseguiram exorcizar o fantasma da ditadura.