O Tribunal Regional Federal da 6ª Região (TRF-6) começa a julgar na terça-feira (8) ação do Ministério Público Federal (MPF) por reparação aos danos causados pela ditadura militar ao povo Krenak.

No processo contra o Estado brasileiro, aberto em 2015, o MPF cobra justiça pelas violações de direitos, torturas, trabalho forçado e maus tratos contra o povo indígena. Além de violência física, os Krenak foram expulsos de suas terras, entregues a fazendeiros.

Uma das ferramentas do etnocídio e genocídio criadas pela ditadura foi o Reformatório Agrícola Indígena Krenak, mais conhecido como Presídio Krenak, para onde eram levados indígenas de de mais de 15 etnias, retirados à força dos seus territórios de 11 estados das cinco regiões.

O Presídio Krenak foi criado em 1969, dentro da Terra Indígena Krenak, na área do Posto Indígena Guido Marlière, na margem esquerda do Rio Doce, entre os municípios de Resplendor e Conselheiro Pena, em Minas Gerais.

Tal construção, que não tinha qualquer previsão legal que o fundamentasse, foi erguida em terra indígena, onde viviam os Krenak, para o confinamento de indígenas classificados como “perturbadores da ordem tribal”.

Eles eram aprisionados por diversos motivos, tais como embriaguez, manutenção de relações sexuais e saída não autorizada da terra indígena. Nada disso era considerado crime. Mas mesmo assim eram motivos para trabalhos forçados, tortura e maus tratos.

O tempo de permanência nesse ambiente e em todo o “reformatório” era definido pelo responsável pelo estabelecimento, Manoel dos Santos Pinheiro, conhecido como Capitão Pinheiro.

Ainda em 1969, a ditadura criou a Guarda Rural Indígena (GRIN), um grupamento composto por indígenas de várias etnias, cujo comando, em Minas Gerais, foi delegado à Polícia Militar. A solenidade de formatura da 1ª turma da GRIN teve a presença do governador Israel Pinheiro

Durante o desfile, foi exibido um indígena dependurado em um pau de arara, instrumento de tortura muito usado por agentes da ditadura. A cena, que foi filmada, é a única registrada no Brasil que mostra, em um evento oficial, um ato de tortura.

Em 15 de dezembro de 1972, todos os indígenas aprisionados foram forçados a se deslocarem para a Fazenda Guarani, em Carmésia (MG), outro centro de detenção destinado a indígenas, a 343 km de distância. O episódio é chamado pelo povo de Exílio.

Fome, medo, torturas, violência sexual
Em Carmésia, os Krenak foram obrigados a conviver com etnias rivais, poucas terras férteis, clima frio a que não estavam habituados, a falta do cipó, que era matéria prima para a artesanato, e a ausência do Rio Doce, que era o centro de suas atividades culturais. 

Os Krenak e outros indígenas passaram fome, sobrevivendo à custa de banana verde cozida ou assada com angu e farinha.

Nos presídios, os indígenas também foram proibidos de falar seus dialetos e praticar rituais de suas culturas. Não podiam fazer qualquer comemoração. Todos estavam sujeitos a castigos físicos, incluindo sessões de torturas e até violência sexual.

Integrantes do MPF estiveram nas terras indígenas dos Krenak e dos Maxakali, entre maio e agosto de 2014, e tomaram depoimentos que confirmaram que também crianças, mulheres e idosos eram vítimas de violência, além de serem obrigados a executar tarefas para os policiais.

“Muitas mulheres foram abusadas sexualmente. Duas delas foram Julieta e Martinha. Eram abusadas por todos os militares e voltaram para a terra delas, no Bananal, em Goiás. Ouviu falar que o Capitão Pinheiro abusava de Julieta. Ela não podia falar nada, não podia conversar nada com ninguém, senão era castigada e apanhava de cassetete”, diz trecho do depoimento de Dejanira Krenak.

Já o indígena Manelão Pankararu, levado de Pernambuco para o Presídio Krenak, contou que havia uma cela destinada a tortura e outra, uma solitária, conhecida como “cubículo”.

“Era uma cadeia grande. Tinha muitas celas, e cada cela tinha quatro camas. Era igual um hospital. Tinha também uma cela que era conhecida como ‘cubículo’, que era onde eles pegavam os índios e metiam o cacete, eu escutava os índios gritando”, contou. 

“Era ali que o índio tomava couro (…) no cubículo havia um pau de arara e também o ‘cachorro quente’, um aparelho que ficava jogando água do teto o tempo inteiro e o índio ficava dois dias numa cela molhada. Alguns índios iam para o pau de arara e para o ‘cachorro quente’ por qualquer motivo, sempre que fazia alguma coisa errada”, relatou o indígena.

Para comprovar a gravidade dos impactos psicossociais resultantes da violência estatal sofrida pelos Krenak, o MPF pediu um parecer ao psicólogo Bruno Simões Gonçalves, especialista em populações tradicionais. 

O relatório destaca que os atos de violência perpetrados pelos réus contra os indígenas resultaram em intenso sofrimento individual dos integrantes da etnia Krenak e à extrema traumatização psicossocial coletiva da etnia.

Ditadura deu terras indígenas a fazendeiros invasores
O território do povo Krenak foi demarcado em 1920 pelo Estado de Minas Gerais. Com o tempo, fazendeiros foram cercando as terras indígenas, tanto por meio de arrendamentos incentivados Serviço de Proteção aos Índios (SPI), como por meio de invasões. 

O aumento de não-indígenas foi acompanhado por conflitos com os fazendeiros que pressionavam pela retirada do povo de sua própria terra.

Os Krenak ganharam na justiça o direito de reintegração de posse contra os posseiros da região, em 1970. Contudo, os fazendeiros invasores se mobilizaram e enviaram até telegramas ao presidente Emílio Garrastazu Médici – o terceiro do período da ditadura militar. 

O governo militar atendeu aos pedidos dos invasores. O povo Krenak foi levado à Fazenda Guarani, que havia sido doada pela Polícia Militar de Minas à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), que repassou a área do Posto Indígena no município de Resplendor ao governo estadual, que por fim doou tudo aos fazendeiros.

Oito anos após a remoção, os Krenak decidiram fugir da Fazenda Guarani e começaram a retornar às suas terras, a despeito do grande temor de serem recebidos com violência pelos fazendeiros e pelos agentes do Estado.

Assim, 25 Krenak retomaram suas terras, mas encontraram um intenso processo de devastação, impossibilitando a caça e a coleta, as terras tomadas por fazendeiros com títulos emitidos pelo governo mineiro. Ficaram reclusos numa pequena faixa na beira do Rio Doce.

Apenas em março de 1983 a Funai ajuizou uma ação sobre a nulidade dos títulos concedidos pelo Estado de Minas Gerais e pela Ruralminas aos fazendeiros. Estes, por sua vez, defenderam a posse afirmando que os Krenak estavam praticamente extintos.

Mas, em 1993, o Supremo Tribunal Federal (STF) acatou a ação, declarando nulos os documentos dos fazendeiros. 

Vinte cinco anos após o Exílio, em 1997, os Krenak conseguiram retomar uma pequena parte de seu território e, em 2001, por meio de Decreto publicado em 19 de abril, foi homologada a demarcação da Terra Indígena do Povo Krenak.

A Comissão Nacional da Verdade reconheceu a ocorrência da sistemática e brutal violação de direitos pelo regime militar. Agora, a ação do MPF procura o reconhecimento pelo Estado Brasileiro, por meio de um pedido público de desculpas e a reparação econômica coletiva.

O MPF também pede o reconhecimento judicial da responsabilidade pessoal de Manoel dos Santos Pinheiro como autor e partícipe do cometimento das graves violações de direitos humanos contra o povo indígena Krenak, bem como que seja reconhecida a existência de relação jurídica entre o ex-capitão, hoje major reformado da PMMG, e a União Federal, consistente no dever de reparar regressivamente o Tesouro Nacional pelas importâncias que venham a ser despendidas com o pagamento de reparações às vítimas.

Para o MPF, o ex-capitão deve ser condenado não só a pagar indenização por danos morais coletivos, como deve perder os proventos de aposentadoria ou inatividade que esteja percebendo da União Federal ou do Estado de Minas Gerais, bem como as patentes, honrarias e postos militares que porventura possua, além das funções e cargos públicos, efetivos ou comissionados, que esteja eventualmente exercendo na Administração Pública direta ou indireta de qualquer ente federativo.

À União, à Funai, ao Estado de Minas Gerais e à Fundação Rural Mineira, o MPF requer que promovam, com a participação dos Krenak – e após realização de consulta livre e informada a este povo, nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) –, a recuperação ambiental de suas terras, esbulhadas e degradadas durante o período da ditadura militar. Para tanto, os réus devem apresentar projeto para a recuperação, a ser discutido com o povo Krenak.

Além disso, o MPF pede que os réus implementem várias ações para resgatar e preservar a cultura e a língua Krenak e promovam a tradução da Constituição Brasileira, da Convenção nº 169 da OIT e do texto temático do relatório final da Comissão Nacional da Verdade sobre as graves violações dos direitos humanos dos povos indígenas.


MPF pede R$ 14,4 milhões por danos morais e coletivos causados ao povo Krenak
Na semana passada, o MPF acionou a Justiça em busca de indenização de ao menos R$ 14,4 milhões por danos morais e coletivos causados ao povo Krenak.  A ação tem como alvos a União, a Funai, os estados de São Paulo e Minas Gerais e o município de Arco-Íris (SP).

A indenização deve ser direcionada aos remanescentes do povo Krenak que se concentram na aldeia Vanuíre, em Arco-Íris, que deve ter seu território expandido e sua infraestrutura agrícola renovada, de modo a garantir a subsistência e desenvolvimento econômico no local.

“O grupo sofre, há mais de 50 anos, as consequências da política de genocídio e etnocídio que o governo militar impôs a partir do fim dos anos 1960 para remover a comunidade de seu território original, localizado em Resplendor, às margens do Rio Doce”, diz o MPF em nota. 

“A conduta dos órgãos oficiais levou à dispersão dos Krenak, com a fixação de parte deles no município do interior paulista. Além da inviabilidade de retornar à terra natal, o grupo enfrenta as sequelas da violência e do processo de degeneração cultural a que foi submetido”, prossegue o comunicado.

Os pedidos formulados pelo MPF incluem medidas de compensação de danos espirituais, considerando-se a desconexão forçada dos indígenas de sua terra – para eles, sagrada – e os consequentes prejuízos para a manutenção de rituais, mitos e vínculos de ancestralidade.

Para essa compensação, o MPF pede a ampliação do território da aldeia Vanuíre e a renovação de toda a estrutura agrícola do local, garantindo à comunidade condições sólidas de subsistência e desenvolvimento econômico. 

A ação pleiteia também a instalação, em Arco-Íris, de um monumento à memória do povo Krenak e a construção de uma nova sede para o museu Akãm Orãm Krenak, onde os indígenas possam manter o acervo de sua história e transmiti-la às futuras gerações.

A ação demanda ainda o ensino gratuito do idioma originário Krenak aos integrantes da aldeia e a disponibilização de documentos oficiais à comunidade referentes ao período em que os indígenas foram violentados e removidos compulsoriamente de seu território.

O MPF destaca que o povo Krenak foi vítima de uma série de crimes contra a humanidade, como escravidão, prisão, transferência forçada, tortura, violência sexual e perseguição por motivos étnicos. 

“Além dos prejuízos à existência cultural dos Krenak, a repressão da ditadura contra o grupo resultou em mortes e traumas. Muitos foram assassinados sob custódia das forças policiais, outros perderam a vida por doenças contraídas ou distúrbios psicológicos”, diz o MPF. 

“As gerações seguintes da comunidade foram marcadas por lembranças de medo e aflição, assim como pela perda gradativa de suas referências étnicas, de seu idioma e de saberes tradicionais”, emenda o órgão.

A Funai informou ainda não ter sido citada sobre a ação, motivo pelo qual não se manifestaria. A Advocacia-Geral da União (AGU) também disse que ainda não foi intimada, mas que, “tão logo o seja, irá solicitar subsídios aos órgãos responsáveis para definir a estratégia processual a ser adotada”.  Os demais não responderam até a publicação da reportagem. 

Pela Constituição, o MPF tem entre suas atribuições defender os direitos dos povos originários brasileiros, além da atuação promovida pelos próprios indígenas nas esfera judicial.