Em meio às crescentes mobilizações sociais pelas ruas do Brasil contra o governo do presidente Jair Bolsonaro, a Câmara dos Deputados voltou a analisar um projeto de lei (PL) que busca endurecer a ação policial contra atos terroristas no país. O documento, contudo, não deixa claro quais atitudes devem ser enquadradas como terrorismo e, portanto, serem combatidas como tal, o que virou motivo de preocupação para entidades nacionais e internacionais que defendem os direitos humanos — entre as quais a Organização das Nações Unidas (ONU). O maior receio é de que, uma vez convertido em lei, se coíba a realização de manifestações contra o governo, como as que aconteceram no último sábado em todo o país, e se tipifique como crime a participação nesses protestos.


De acordo com a proposta, de autoria do deputado Major Vítor Hugo (PSL-GO), da base de apoio ao governo, mesmo diante de atos que não são tipificados como crime de terrorismo, as autoridades policiais poderão atuar para prevenir e reprimir essas mobilizações. Bolsonaro apresentou o PL pela primeira vez em 2016, quando ainda era deputado. A proposta expirou em 2019, quando assumiu o governo, mas Vítor Hugo reformulou o projeto e o reapresentou no mesmo ano. A proposta ficou parada durante a presidência de Rodrigo Maia (sem partido-RJ).

Segundo o texto, deverá ser tratado como terrorismo qualquer atitude que seja perigosa para a vida humana ou potencialmente destrutiva em relação a alguma infraestrutura crítica, serviço público essencial ou recurso-chave, ou que aparente ter a intenção de intimidar ou coagir a população civil ou de afetar a definição de políticas públicas por meio de intimidação, coerção, destruição em massa, assassinatos, sequestros ou qualquer outra forma de violência.

Além disso, o projeto sugere a criação de um Sistema Nacional Contraterrorista, que seria controlado pelo governo federal e coordenaria as ações de planejamento para o combate ao terrorismo. A proposta também conta com artigos que garantem uma espécie de excludente de ilicitude aos policiais que eventualmente atirarem contra os terroristas durante alguma ação, e que permitem a esses profissionais se infiltrar em organizações suspeitas e utilizar uma identidade falsa durante a investigação. A matéria propõe, ainda, a instituição de um sistema de premiação aos agentes públicos que se destacarem no enfrentamento ao terrorismo.

Definição imprecisa


Diferentes representantes da ONU manifestaram preocupação com esse projeto, e uma carta com as considerações da entidade sobre a proposta foi enviada ao Palácio do Planalto no mês passado. Nela, sete representantes da organização consideram que o texto “expande significativamente o conceito de terrorismo nas leis domésticas” e que ele “pode levar ao aumento da criminalização de defensores dos direitos humanos, movimentos e organizações sociais, bem como a restrições às liberdades fundamentais”.

De acordo com os integrantes da entidade, as mudanças “ampliam indevidamente o conceito de “terrorismo” e o tipo de ações consideradas “atos terroristas”, ao usar uma linguagem imprecisa, que vai muito além do entendimento estabelecido do que constitui terrorismo ou atos terroristas de acordo com o direito internacional”. “O amplo escopo e a imprecisão desses termos tornam os indivíduos suscetíveis à violação de vários direitos”, frisam.

O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos também se manifestou contra o projeto. Em manifestação à Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara, Jan Jarab, um dos representantes da ONU na América do Sul, destacou que “os Estados devem garantir que a legislação antiterrorismo esteja limitada à criminalização de condutas devidamente e precisamente definidas com base nas disposições do seu enfrentamento”.

No entendimento dele, a proposta de Vítor Hugo vai na contramão disso e pode “criar fortes limitações às liberdades fundamentais, impactando diretamente na atuação da sociedade civil, movimentos sociais e pessoas defensoras dos direitos humanos, estimulando e facilitando a repressão”.