A CEO da Sigma Lithium, Ana Cabral, está sendo criticada nas redes sociais por afirmar que parte dos funcionários da empresa já foi "mula de água" e pertence a "uma geração perdida" do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. A declaração foi dada em entrevista ao programa Fast Money, da CNBC, no último dia 13, durante a COP 30 (Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas). 

Ana Cabral também é copresidente da empresa, a quinta maior em produção de lítio do mundo. A Sigma investe nesse mineral, no Vale do Jequitinhonha, nos municípios de Itinga e Araçuaí, onde estão localizados seus ativos: a mina de Grota de Cirilo e a planta de processamento. 

"No Vale do Jequitinhonha, quem é que trabalha na nossa indústria greentech? Nós treinamos aquela geração perdida do Vale, que era mula de água; as crianças que não tinham escola. Elas carregavam água na cabeça. Elas passavam o dia carregando água da cisterna pública para casa e foram trabalhar no bananal. Nós pegamos a mão de obra do bananal e treinamos para ser operador de planta. Temos 43 operadores que são ex-mulas de água", disse Ana Cabral. 

O termo ‘greentech’  é usado para descrever empresas de 'iniciativa verde', que utilizam soluções tecnológicas para reduzir o impacto ambiental negativo.

Repercussão: prefeituras e CNBB

Em carta aberta, o prefeito de Araçuaí, Tadeu Barbosa (PSD), pontuou que a mineração "tem papel relevante no desenvolvimento regional", mas destacou a agricultura — especialmente a produção de banana — como atividade que sustenta famílias com trabalho técnico e moderno. Em relação às expressões "mulas de água" e "geração perdida", o chefe do Executivo municipal disse: "Não traduz o que vivemos aqui. Não faz justiça à dignidade do nosso povo."

Durarante a entrevista, Ana Cabral afirmou que foram abertas quatro escolas na região. A informação foi desmentida pela Prefeitura de Itinga. "É necessário esclarecer que as escolas mencionadas já funcionavam muito antes da instalação da empresa. O que houve, de fato, foi uma parceria pontual da Sigma com a prefeitura para reforma de duas unidades escolares."

A Prefeitura de Virgem da Lapa destacou que a expressão "mulas de água" não existe na linguagem, memória ou identidade do Vale do Jequitinhonha.

"O território não reconhece esse termo porque ele nunca fez parte da nossa realidade. Trata-se de uma construção equivocada, que tenta reduzir um povo inteiro a um estereótipo ultrapassado. O Vale do Jequitinhonha é feito de cultura, trabalho, tradição e dignidade. A geração que a senhora Ana Cabral chamou de perdida é justamente a que mais estudou", disse o Executivo municipal.

"Aqui não existe geração perdida. Existe geração de luta. Geração de artistas, de trabalhadores, de quilombolas, de agricultores, de mães que sustentam suas famílias, de jovens que estudam, sonham e constroem um futuro melhor apesar de toda desigualdade", opinou Alan Santos, influenciador digital de Araçuaí. Nas redes sociais, diversos moradores têm manifestado descontentamento com a declaração da CEO. 

A Comissão Especial para a Ecologia Integral e Mineração da Conferência Nacional dos Bispos (CNBB) divulgou um documento intitulado "Nota de solidariedade à Diocese de Araçuaí e ao povo do Vale do Jequitinhonha".

"Com tristeza e indignação, constatamos que a visão expressa pela empresa, ao falar de 'geração perdida' e de crianças tratadas como 'mulas de água', difama, injustamente, um povo trabalhador e resiliente. E também expõe a lógica de exploração e de descaso em territórios atingidos pela mineração no Brasil: lucra-se com o território enquanto se despreza seus filhos e filhas", afirmou a entidade em parte do texto. 

Ministério Público Federal

A deputada estadual Andreia de Jesus (PT-MG) disse que "racismo travestido de desenvolvimento" não será naturalizado. "Enquanto fazia lobby na COP, ela ofendia justamente quem carrega a verdadeira riqueza do Vale: as crianças que preservam o meio ambiente e mantêm viva a nossa cultura", declarou, acrescentando que iria acionar o "Ministério Público Federal (MPF) e todos os órgãos competentes". 

No início de setembro deste ano, o MPF enviou uma recomendação à Agência Nacional de Mineração (ANM) para que suspendesse temporariamente e revisasse as autorizações de pesquisa e extração de lítio em Araçuaí e outras cidades do Vale do Jequitinhonha, o chamado "Vale do Lítio". Na ocasião, o órgão estabeleceu 20 dias de prazo para resposta.

Laudo técnico elaborado pelo órgão federal apontou deficiências em estudo apresentado pela Sigma, em 2021, em relação aos impactos nos recursos hídricos pela exploração de minério na região. "A localização das duas cavas — locais de retirada de material para explorar o minério — levanta sérias preocupações quanto à interferência no Ribeirão Piauí, em especial pelo rebaixamento do nível d’água para a lavra", avaliou o MPF.

O Estado de Minas questionou a assessoria da ANM se o pedido do MPF foi analisado. O EM também procurou a Sigma. Em ambos os casos, não houve retorno até a publicação desta matéria. A publicação será atualizada caso a reportagem receba resposta.

Embora tenha sido criada em 2012, a Sigma só começou a produzir lítio em abril de 2023 e fez o primeiro embarque, com 15 mil toneladas, para a China no fim de julho daquele ano. O período entre a fundação e o início da operação foi dedicado ao desenvolvimento do projeto, obtenção de licenças ambientais, captação de recursos e construção da infraestrutura.

A Sigma já investiu mais de R$ 3,8 bilhões na região. Em agosto de 2024, por exemplo, a empresa teve um financiamento aprovado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) no valor de R$ 486,7 milhões, visando ampliar a sua produção de lítio de 250 mil para 520 mil toneladas anuais no projeto "Grota do Cirilo", entre os municípios de Itinga e Araçuaí.