O 19 de abril não será de comemoração para a aldeia Naô Xohã, eles veem todos os dias a vida ficar mais difícil sem o Paraopeba

O rio sangrou. Era por volta das nove horas da manhã de 26 de janeiro, um após o rompimento da barragem I da mina Córrego do Feijão, em Brumadinho, quando a lama começou a escorrer e contaminar as águas do trecho do rio Paraopeba que corre a dez metros da aldeia indígena Naô Xohã, do povo Pataxó Hã-Hã-Hãe.

Sentadas às margens, algumas das 120 pessoas que vivem na comunidade acompanharam lentamente a mudança no tom do rio, o que antes era verde passou a ser marrom, e enfrentaram o desespero ao ver os peixes, fonte de alimento tão primordial, saltarem para fora das águas contaminadas.

Neste 19 de abril, data em que se comemora o “Dia do Índio” ou “Dia da Resistência Indígena”, como os povos tradicionais preferem, não há motivos para eles celebrarem.

Quase três meses após a tragédia, não há vida que tenha resistido à lama: houve mortandade de peixes, os cães da aldeia precisaram ser internados após brincarem na água suja e os rituais de cura e fortaleza, tão necessários à existência dos Pataxó que ali vivem, precisaram ser cancelados.

A população indígena segue velando um rio morto em uma “cerimônia sem enterro”. A Vale, mineradora responsável pelo desastre, promete dar assistência financeira, mas os indígenas temem que o significado espiritual e cultural do rio Paraopeba jamais possa ser restituído. O rio morreu.

Raízes enterradas

“Quando a lama chegou, vimos o sangue escorrer do nosso Txôpay. O homem destruidor tirou a vida de Txôpay”. O lamento pertence ao cacique Hayó, líder da aldeia localizada a pouco mais de vinte quilômetros do ponto onde a barragem da Vale estourou. No idioma falado pelos Pataxó e em seu folclore centenário, Txôpay é um deus guerreiro criador desse tronco indígena.

A comunidade acredita que ele desceu à Terra para ensiná-los a sobreviver caçando, pescando, plantando e colhendo, sempre em harmonia e comunhão com a natureza. Para os indígenas da etnia Hã-Hã-Hãe, o Deus estava presente no rio Paraopeba antes de sua destruição.

Do tronco mais tradicional dos Pataxó, os Hã-Hã-Hãe são oriundos de Coroa Vermelha, reserva indígena próxima de Porto Seguro, no Sul da Bahia.

Há quase dois anos, os indígenas da etnia que moravam em Belo Horizonte e sobreviviam da venda de artesanato optaram por recuperar suas raízes culturais e se instalaram em um pequeno pedaço de terra à beira do Paraopeba, logo na divisa entre Brumadinho e São Joaquim de Bicas.

“O cacique fundador da aldeia veio para cá vender artesanato e viu que era possível ganhar dinheiro para ajudar os familiares. Quando a gente chegou na grande capital, vimos que a realidade era outra, tão dura quanto o massacre que sofremos na Bahia. Então achamos a terra onde fica a Naô Xohã, aqui nós temos paz”, comenta Angohó, “lua” em Pataxó, 53 anos, esposa do cacique.

Ali, em uma área densa de mata atlântica, as lideranças da comunidade contam ter sido aconselhadas por Tupã, um deus também criador dos céus, da terra e dos mares, segundo a mitologia indígena, a não voltar para a Bahia, mas permanecer no local, recuperar a terra destruída anteriormente por posseiros e realizar seus rituais mágicos de cura com o poder das águas do rio. O lugar onde a aldeia está assentada passa por um processo legal para ser reconhecida como uma reserva, conforme contam moradores.

Paraopeba, fonte de força e cura

Meses antes do colapso da barragem da Vale, os indígenas que vivem na comunidade iniciavam o processo de subsistência autônoma da aldeia. A água do Paraopeba servia para irrigar as plantações de mandioca, milho e amendoim, tradicionais na alimentação, e para a produção de farinhas e óleos, estes usados em rituais de cura e limpeza espiritual.

“De repente veio o rompimento e tudo mudou. As crianças pedem o peixe, a mandioca, querem tomar banho no rio e nós não sabemos o que fazer”, comentou Angohó.

Os danos à vida cotidiana da comunidade, entre eles a falta de alimentos e a necessidade de afastar as mulheres grávidas possivelmente adoecidas pela água contaminada do Paraopeba, têm solução prometida pela Vale.

A mineradora se comprometeu a pagar indenizações aos indígenas que vivem na comunidade. Por outro lado, o rio, fonte de fortaleza espiritual para os Pataxó, não pode mais ser salvo, por isso para eles “não têm dinheiro que pague a morte do rio”.  

“As pessoas pensam que perdemos só a plantação, o banho, o peixe, nós perdemos uma vida”, ressente o cacique.

Não à toa, foi preciso que os líderes da aldeia cancelassem a “Festa das Águas”, prevista para 5 de outubro. O rito milenar é realizado pelos Pataxó espalhados pelo Brasil e foi criado pelos primeiros antepassados indígenas desse povo como um momento para pedir força, proteção e fartura a seus guardiões. Os batismos de novos filhos Hã-Hã-Hãe também aconteceriam durante a cerimônia.

“O batismo é, para nós, um ritual das águas. É preciso que a criança seja colocada em água corrente, nunca em água parada, tem que ter uma argila certa para passar no corpo. No rio, o cacique e o pajé consagram aquele espírito para Txôpay”, conta Angohó.

Os rejeitos sobre o rio dificultam também a realização dos rituais de cura e a produção das “garrafadas” - combinações de plantas utilizadas para exercício da medicina tradicional e popular.

“Ritos para cura da alma, cura espiritual e até doenças mais sérias, como câncer, doenças que os médicos falam que não têm mais jeito, eram feitos aqui no rio”, comenta a esposa do cacique.

Os rituais e o cotidiano

Apesar de toda a dor provocada pela morte do rio, há uma promessa feita entre os indígenas para não se deixar abalar. O pedido é, aliás, uma forma de evitar o adoecimento mental dos moradores. 

Assim, quem chega na aldeia, é recebido de forma bastante calorosa. Em panelas gigantescas, algumas mulheres da aldeia preparam refeições para toda a comunidade sendo preciso, muitas vezes, preparar mais comida para atender a todos. 

As crianças da aldeia, sem número preciso, brincam com os cães Carrapicho, Vaidosa e Lobão, mas também se divertem com bonecas e brinquedos tradicionais. 

A pintura corporal, feita com a semente ralada do jenipapo ainda verde, dura em torno de cinco dias. O alimento é misturado ao carvão e à água em pedras específicas. Pinturas mais coloridas e chamativas são feitas nas mulheres e nos homens solteiros, enquanto as mais discretas cabem às pessoas casadas. 

“Os galhos quebram, mas a raiz é forte”

Se o rio não é mais capaz de oferecer o sustento e os rituais de cura e fortalecimento foram cancelados por, pelo menos, trinta anos, como acreditam os povos indígenas, sair do pedaço de terra onde a aldeia está estabelecida não é, nem de longe, uma possibilidade.

“Enterramos o nosso umbigo aqui dentro, já apresentamos esse lugar para nosso Txôpay, para nosso Tupã. Todas as forças da natureza nos ajudam para que a tragédia não nos abata”, desabafa o cacique.

Para os momentos de tristeza, como aqueles em que a chuva forte arrasta ainda mais rejeitos pelo Paraopeba e as goteiras pingam no interior das ocas, há um dito sobre o qual Angohó se abraça: “os galhos quebram, mas a raiz é forte”.

Queixas e a relação com a Vale

Sem a água do rio para banho e para atividades básicas, os moradores da aldeia contam com doações de água mineral para cozinhar e beber. De acordo com os indígenas, a Vale tem enviado água por meio de caminhões para banho e irrigação das plantações.

Apesar disso, há muitas reclamações. Os corpos dos indígenas, tão acostumados com o banho de rio, têm sofrido reações alérgicas quando em contato com a água fornecida. 

A entrega de alimentos por parte da mineradora também tem sido insatisfatória. Segundo os moradores da Naô Xohã, apenas carne vermelha tem sido entregue e, portanto, a cultura de se alimentar da carne do peixe tem sido desrespeitada. Angohó contou que carregamentos com peixe foram feitos em apenas três ocasiões e, em uma delas, o alimento chegou estragado. 

Procurada pela reportagem, a mineradora ainda não se pronunciou sobre o assunto. Em uma nota enviada anteriormente, a Vale havia confirmado a existência de um acordo estabelecido com o Ministério Público Federal (MPF) e a Fundação Nacional do Índio (Funai) para pagar indenizações aos indígenas que vivem no local.

Procurada pela reportagem, a mineradora informou que a distribuição de peixe foi suspensa provisoriamente atendendo a pedido da própria comunidade, mas foi realizada nessa quinta-feira (18).

A Vale também garantiu que realizou a doação de cestas básicas, fraldas, colchões e outros itens diversos à comunidade. De acordo com a empresa, houve a implantação de cerca para isolar os animais do Paraopeba. No entanto, durante a visita ao local, a reportagem constatou que o acesso ao rio é fácil e desimpedido. 

Quanto a água para o banho, a Vale informou que “definiu pela construção de uma rede de abastecimento de água na localidade para distribuição de água do ponto de abastecimento já existente, que não foi comprometido com o rompimento da Barragem I”.

Culturas centenárias interrompidas

Não é a primeira vez que o rompimento de uma barragem e a contaminação de uma bacia hidrográfica afetam profundamente os modos centenários de vida de grupos indígenas.

Na tarde de 5 de novembro de 2015, a barragem de Fundão se rompeu e uma enxurrada de lama avançou sobre o Rio Doce, na região Central de Minas Gerais. O desastre prejudicou todo o funcionamento da aldeia do povo Krenak, que vive nas redondezas do município de Resplendor, na região do Vale do Rio Doce.

Toda a extensão do rio, de Mariana a Regência, no Espírito Santo, onde ele desagua no mar, foi contaminada pelos rejeitos. Os indígenas foram obrigados a trocar o banho de rio por um banho em caixas d'água, padeceram de doenças mentais provocadas pelo trauma e precisaram cancelar seus rituais de limpeza corporal e as atividades que tinham relação direta com o rio. 

Procurada pela reportagem, a Fundação Renova, responsável pela reparação do desastre, informou que, à época, foi elaborado um plano de atendimento emergencial para as 130 famílias que vivem na terra indígena Krenak.

Segundo a fundação, as medidas nele previstas permanecem até os dias atuais. Entre elas estão o fornecimento de água potável, água mineral e sacos de ração para os animais que ali vivem. 

Uma consultoria independente, com validação da Funai, foi contratada para realizar um Estudo de Componente Indígena (ECI). O esforço teria como objetivo dimensionar o impacto e estruturar as medidas de reparação. 

"No entanto, o ECI referente à Terra Indígena Krenak ainda não teve início, respeitando a decisão do Povo Krenak que ainda não permitiu a continuidade desse processo", comunicou a Renova por meio de nota.