SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em discurso histórico na última quinta-feira (27), o presidente da França, Emmanuel Macron, reconheceu o papel do país europeu no genocídio de Ruanda, mas disse não ter havido envolvimento direto dos franceses no assassinato de tutsis em 1994.
 
"Os assassinos que assombravam os pântanos, as colinas, as igrejas não tinham a cara da França. Ela não foi cúmplice. O sangue derramado não desonrou suas armas, nem as mãos de seus soldados, que viram também o inominável, curaram feridas e engoliram o choro", disse o mandatário francês, o primeiro a visitar o país desde 2010, em um memorial em Kigali.
"Mas a França tem um papel, uma história e uma responsabilidade política em Ruanda."

A palavra responsabilidade, inclusive, foi repetida quatro vezes na fala de Macron, que disse esperar que o reconhecimento do passado possa levar ao perdão. "Nesse caminho, só aqueles que atravessaram a noite podem talvez perdoar", afirmou na parte final do discurso, no memorial do genocídio Gisozi, onde mais de 250 mil vítimas estão enterradas.

No local, fileiras de crânios estão em um túmulo coletivo, e os nomes das vítimas aparecem inscritos em um muro preto.

A visita ocorreu após a divulgação, em março deste ano, de um relatório elaborado por um painel investigativo da França que apontou os efeitos da proximidade dos oficiais franceses com o governo comandado por hutus.

O documento culpou o país europeu por não prever o massacre e disse que o governo tinha uma responsabilidade "séria e grande". Em sua fala, Macron afirmou que, na época, a França "não compreendeu que, ao querer evitar um conflito regional ou uma guerra civil, ela ficou na verdade ao lado de um regime genocida" no período entre 1990 a 1994.

Por outro lado, em sintonia com o discurso de Macron desta terça, o relatório absolveu a França de ter participação direta na morte de mais de 800 mil tutsis e hutus moderados -acusação feita pelo presidente de Ruanda, Paul Kagame, algumas vezes.


O tom de Kagame nesta quinta, porém, foi de conciliação. Ele elogiou o "extraordinário e independente" relatório e disse que abriu uma porta para a normalização das relações. Ele também cumprimentou Macron pelo discurso e afirmou, em uma entrevista coletiva realizada mais tarde, "que as palavras eram mais fortes que um pedido de desculpas".

Kagame disse ainda que o presidente francês estava enfrentando racismo e ressaltou a vontade de Ruanda de retomar as relações com o país europeu. "Essa visita é sobre o futuro, não o passado", afirmou. "Quero acreditar que hoje essa aproximação é irreversível."

O ruandês, que faz parte do grupo étnico dos tutsis, é a principal força política do país africano desde que seu exército rebelde encerrou os assassinatos realizados por esquadrões da morte leais ao governo hutu.

A reaproximação também esteve presente no discurso de Macron, que disse existir a oportunidade de "uma aliança respeitosa, lúcida, solidária, mutuamente exigente, entre a juventude de Ruanda" e a da França, sem que o passado seja apagado.

O discurso de Macron foi bem recebido pelos ruandeses, apesar de a visita oficial ter sido marcada pela falta de estandartes ou bandeiras normalmente presentes e pelo silêncio nas ruas, já que restrições a aglomerações seguem mantidas para conter a propagação do coronavírus.


A sobrevivente do genocídio Esther Mukakalisa, 59, que perdeu seus pais e irmãos e ainda leva no rosto as marcas de um ataque de machete, assistiu à fala pela televisão, ao lado de uma prima e de vizinhos.

"Após ouvir esse discurso do presidente francês, ele tocou meu coração, e estou muito feliz que a França reconheça suas responsabilidades", afirmou à agência de notícias Reuters. "Eu perdoo a França."

A prima dela, Ernestine Mudahogor, acrescentou que, "como sobreviventes do genocídio, fomos ensinados a perdoar". "Se os franceses estão se desculpando, estamos prontos para perdoar."
Egide Nkuranga, presidente da Ibuka, organização que reúne associações de sobreviventes, disse à Reuters que Macron mostrou compromisso com a cooperação ao prometer prender qualquer perpetrador do genocídio que more na França.

Em sua visita, o presidente francês prometeu ainda nomear um novo embaixador, o primeiro enviado oficial do país desde 2015 -a França não quis indicar um representante após a acusação de cumplicidade com o genocídio feita por Kagame.

O ministro das Finanças de Ruanda, Uzziel Ndagijimana, também disse ter assinado um empréstimo de 60 milhões de euros (R$ 384,6 milhões) da França para financiar o acesso à vacina contra a Covid-19 e proteção social à população do país africano.

Com casos em queda, Ruanda soma hoje 26.780 infecções e 350 mortes, segundo dados do Our World in Data. A vacinação, porém, segue estagnada na casa de 2,7% da população que recebeu ao menos uma dose desde 15 de abril, e o último dado disponível é do dia 8 de maio.

DOCUMENTOS ABERTOS

A questão do genocídio de Ruanda ganhou força na França após Macron, que tem tentado afastar o país de seu passado colonial, concordar em abrir os arquivos do ex-presidente François Mitterand, no poder naquela época.

Pouco depois do anúncio, o país africano divulgou um relatório próprio em que dizia que a França sabia que um genocídio estava sendo preparado e assumiu a responsabilidade por possibilitá-lo, continuando com seu apoio ao então presidente de Ruanda, Juvenal Habyarimana.

"Oficiais franceses armaram, aconselharam, treinaram, equiparam e protegeram o governo de Ruanda", concluiu o relatório, acrescentando que o país europeu encobriu seu papel por anos.