Por:Correio Braziliense - Correio Braziliense
O elemento água está presente em quase tudo na Terra. Dois terços do planeta é composto por água. No entanto, apenas 2,5% é doce, e a maior parte está presa nas geleiras das calotas polares. A economia não gira e a sociedade não vive sem recursos hídricos, mas é preciso se contentar com 0,5% do suprimento disponível para uso. Contudo, a demanda mundial deverá aumentar 40% até 2030 e 55% até 2050, ano no qual se estima que mais de 40% da população mundial viverá em áreas de grave estresse hídrico.
No Brasil, que tem a sorte de estar sobre o maior aquífero do globo, o Guarani, a demanda aumentou 80% nas últimas duas décadas, segundo dados da Agência Nacional de Águas (ANA). A previsão do órgão é de que, até 2030, a retirada aumente 24%. “O histórico da evolução dos usos da água está diretamente relacionado ao desenvolvimento econômico e ao processo de urbanização do país”, diz estudo da agência. No entanto, o maior consumo de água em termos é na irrigação agrícola.
O chefe-geral da Embrapa Meio Ambiente, Marcelo Augusto Boechat Morandi, explica que a demanda por água para a agricultura irrigada no mundo aumentará de 2.600 quilômetros cúbicos (km³) em 2005 para 2.900 km³ em 2050. Cada km³ equivale a um trilhão de litros. “Para efeito de comparação, o Lago Paranoá, em Brasília, tem 0,5 km³”, explica o especialista.
O uso da água no meio rural representa 83% da demanda de captação de água total brasileira, dos quais 72% são destinados à irrigação, prática em franca expansão no Brasil. Passou de 462 mil hectares em 1960 para 6,1 milhões de hectares em 2014, em especial por meio de pivôs centrais. “Assim, uma necessidade para o presente e o futuro é tornar mais eficiente a prática da irrigação. Estima-se hoje uma perda de 40% devido a sistemas inadequados de irrigação ou vazamentos nas tubulações”, diz Morandi.
Poluição difusa
Outra preocupação é com a qualidade da água, uma vez que é no espaço rural que nascem os grandes mananciais de abastecimento. Apesar de a poluição urbana ser a principal fonte de degradação, a poluição difusa de origem rural, causada pela elevada utilização de fertilizantes e pesticidas e pela perda de solos por processos erosivos, têm alto impacto. “A distribuição da água não é homogênea entre as regiões. Enquanto o Norte detém 68,5% da água doce disponível, o Nordeste tem apenas 3,3%”, compara. Nas demais regiões a disponibilidade é de 15,7% no Centro-Oeste; 6,5% no Sul; e 6% no Sudeste. “A distribuição das reservas não acompanha a concentração populacional nem a demanda hídrica das diferentes partes do país”, emenda.
O especialista em água do Banco Mundial Thadeu Abicalil explica que a escassez de água é uma relação permanente. “Em muitos locais, como São Paulo e Minas Gerais, a demanda é sempre maior que a disponibilidade hídrica”, explica. Quando falta, é preciso gerenciar o uso prioritário, uma vez que a água é essencial também para geração de energia, além do abastecimento rural e do consumo humano.
“A crise hídrica acontece quando fenômenos climáticos ou de gestão estressam a relação. Usar água do reservatório, quando no período seguinte pode faltar, é gestão. Mas existem fenômenos também, como a seca no semiárido de 2012 a 2018, ou no Distrito Federal em 2017 e em São Paulo em 2015”, lembra.
Abicalil destaca que a crise hídrica também está associada a excesso de água. “Com as mudanças climáticas, aumentou a variabilidade de chuvas. Podemos ter mais secas e mais enchentes. O cenário atual é de volatilidade”, ressalta. Chuvas em volume muito superior à capacidade de armazenamento representam um problema. Segurança hídrica é gerenciar a crise de seca e o armazenamento no excesso. “O Brasil está avançando neste conceito e há uma melhora da capacidade de enfrentar os eventos climáticos extremos. Mas o país recém saiu do estágio que chamo de crise hidrológica, de ações apenas emergenciais”, diz.
Controle da situação é agir mesmo quando o sistema está funcionando bem. “Como o Nordeste enfrenta secas prolongadas, medidas como a transposição do Rio São Francisco se fizeram necessárias”, assinala. Brasília e São Paulo, que viveram crises agudas, saíram delas com conhecimento e mantiveram a economia. A infraestrutura e a conscientização das populações melhoraram. “Em São Paulo, foi feito bônus tarifário para quem economizou. Brasília, racionamento. Ambas as cidades reduziram o consumo e o efeito pós-crise resultou em consumo menor. Isso é gestão de risco”, explica.
Antes do risco, no entanto, é preciso melhorar o uso da água que existe. Gerenciar a proteção das nascentes e o entorno dos reservatórios e criar infraestrutura são medidas fundamentais. “Isso envolve aspectos econômicos, o valor da água. Se a disponibilidade é insuficiente se constrói barragem, adiciona infraestrutura”, ressalta o especialista do Banco Mundial.
Florestas
A proteção das nascentes e das florestas deve ser o primeiro passo, na opinião do professor do Departamento de Engenharia Sanitária e do Meio Ambiente da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Adacto Benedicto Ottoni. “Uma das principais formas de degradação da água é o desmatamento. O aumento das inundações está correlacionado com o aumento da seca. A chuva não cai igualmente o ano todo, há mais meses de seca do que de chuva. E a natureza produz água doce na estiagem por meio da floresta”, afirma.
A floresta infiltra 80% da água da chuva e presta um serviço ambiental, retendo a água no solo. “Além de amortecer as enchentes, essa água subterrânea é que alimenta o rio na seca. Se desmatar, agrava a erosão do solo e a água é perdida. Vai para o mar e fica salgada”, assinala Ottoni. “A melhor forma de evitar risco é reflorestando a bacia. Se parar de desmatar já resolve”, acrescenta.
O professor lembra, ainda, que a legislação brasileira garante a proteção das nascentes. “É só seguir o Código Florestal, segundo o qual, com raras exceções, as áreas íngremes com inclinação acima de 45 graus e faixas de proteção de rios não podem ter ocupação a não ser mata ciliar. A lei é boa, mas não é cumprida”, denuncia. Nas áreas produtivas, o especialista defende a recarga artificial da água subterrânea. “É possível fazer valas de infiltração de encostas, isso aumenta a umidade do solo”, recomenda.
Garantir o saneamento básico nas áreas urbanas também evita que a água das enchentes se perca. Como as cidades são impermeabilizadas pelo asfalto, é preciso investir em infraestrutura, diz Ottoni. “Tem que recolher o lixo para não assorear o esgoto; é preciso um programa de educação ambiental; também é possível aumentar permeabilidade, construindo estacionamentos com material poroso, que permite infiltração”, enumera. “O homem não precisa degradar para se desenvolver. A saída é fazer gestão sustentável”, emenda.
Dessalinização
A dessalinização é uma alternativa utilizada no sertão e no agreste nordestino, onde a água subterrânea é de pouca produção e tem alto teor de sal. “Já existem pequenos sistemas comunitários. O Brasil domina esta tecnologia”, destaca Thadeu Abicalil, do Banco Mundial. Segundo ele, Fortaleza está em período de consulta pública para poder dessalinizar numa grande planta. “Isso é uma solução adotada em muitos países. Jordânia, Austrália, Espanha, Israel são exemplos. Outra é o reúso”, afirma.
Regiões de escassez hídrica e grande demanda industrial e agrícola devem reutilizar a água tratada. “Paulínia (SP) tem uma planta que pega parte do esgoto tratado, leva para uma estação avançada e gera uma água com potencial na indústria. Isso também pode ocorrer para reúso agrícola. Países utilizam para fruticultura. O reúso é uma forma de uso do esgoto para alcançar segurança hídrica”, explica.
No entender de Fabiana Alves, da campanha de Clima e Energia do Greenpeace Brasil, o país tem poucos projetos de reúso de água. “São quase 100 milhões de brasileiros sem acesso à coleta de esgoto, o correspondente a 47,6% da população total do país. Além disso, apenas 46% do esgoto coletado é tratado. O problema de saneamento, que é algo básico, dimensiona quão longe estamos de falar em reúso de água no Brasil”, denuncia.
Fabiane lembra que o desastre de Brumadinho, onde uma barragem de rejeitos de minério colapsou, provocou contaminação de metais pesados provados em análises da ANA e da SOS Mata Atlântica por quase 300 quilômetros de rio. “Portanto, a água não pode ser utilizada sem tratamento, seja para consumo, humano, animal, ou para atividades agrícolas”, lamenta.
MDR quer ampliar abastecimento
O recém-criado Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) incorporou a política federal de segurança hídrica, com o intuito de ofertar água à população e à atividade econômica em todo o território nacional, sobretudo em regiões frequentemente afetadas por períodos de seca e estiagem. A pasta prevê investimentos de R$ 25 bilhões em 114 obras estruturantes para ampliar o abastecimento de água no país.
Em nota, o ministério explica que fará a gestão das políticas de saneamento ambiental com o desafio de levar tratamento de esgoto e de água às regiões que ainda não possuem esse direito essencial à saúde pública. “Nesse sentido, a medida provisória do Marco Legal do Saneamento Básico (MP 868/2018), sob análise do Congresso, tem o objetivo de modernizar o setor e normatizar o investimento privado nos serviços”, afirma.
“Outra ação fundamental é a revitalização de rios, estruturada em cinco eixos de atuação para a recuperação e preservação da bacia: saneamento, controle de poluição e obras hídricas; proteção e uso de recursos naturais; economias sustentáveis; gestão e educação ambiental e, por fim, planejamento e monitoramento”, enumera a pasta.
O ministério também deve entregar o eixo norte do projeto de integração do Rio São Francisco. “As estruturas necessárias à passagem da água estão em fase final e deverão ser concluídas no primeiro semestre deste ano”, diz a nota.