A atividade começa às 4h de sábado a quinta-feira e segue até as 10h, quando o sol já está alto e a temperatura acima dos 40ºC prejudicam a saúde de quem trabalha ao ar livre, na construção civil. É retomado às 15h e pode invadir a madrugada. No caso de um indiano que vive há dois anos em Doha e que pediu para o nome não ser revelado por medo de represália, a jornada se encerra às 18h. O salário é de 2.000 rials (cerca de R$ 2.800). No inverno, quando as temperaturas ficam mais amenas, ele faz hora extra e tira cerca de 2.700 rials (R$ 3.800). 

O dinheiro é bom, diz o indiano ao Estadão. O problema é que ele precisa enviar parte para sua família na Índia e ainda pagar uma dívida de 5.000 rials (R$ 7.100) que tem com a empresa que o recrutou em seu país.

As taxas de recrutamento foram proibidas no Catar, mas ainda são praticadas nos países onde os colaboradores são selecionados para trabalhar principalmente em fábricas e na construção. Praticamente toda a infraestrutura da Copa do Mundo foi erguida por trabalhadores imigrantes - dos 2,7 milhões de habitantes no país-sede, apenas 300 mil são cataris e, segundo a Human Rights Watch, dos imigrantes, cerca de 1 milhão atua na construção civil e 1 milhão, em funções como de empregadas domésticas, garçons e camareiras. O governo do país, porém, calcula que o número total de trabalhadores de fora é de 1,5 milhão.

Desde dezembro de 2010, quando o Catar ganhou o direito de sediar a Copa do Mundo, não pararam de surgir denúncias de violação de direitos humanos no país, sobretudo em relação às condições dos trabalhadores imigrantes. As indústrias e construtoras cataris contratam a maior parte de seus funcionários em outros países. Quando os trabalhadores chegam ao Catar, vão viver em alojamentos mantidos pelas próprias empresas na zona industrial de Doha.

O Estadão esteve duas vezes nessa região da periferia da cidade, que obviamente nada tem a ver com a opulência das zonas centrais. Na primeira ocasião, a reportagem selecionou um alojamento encontrado na internet. Foi de Uber para o local, mas parou em um restaurante que ficava a pouco mais de dois quilômetros da moradia coletiva.

Achei que, por eu ser mulher, o motorista poderia não querer me deixar no local, que, neste caso, era destinado apenas a homens. Desci diante do restaurante Ambrosia, caminhei meia quadra na calçada e logo comecei um trajeto por uma rua que não tinha nem asfalto nem calçada - e assim foi todo o caminho até o destino pretendido. A iluminação era bastante fraca (eram 18h20 e rapidamente escureceu) e centenas de caminhões, ônibus e van se empilhavam, um estacionado ao lado do outro, por todos os cantos. São esses os veículos que levam os imigrantes para o trabalho todos os dias.

Durante a caminhada de 20 minutos, só cruzei com homens, e é razoável imaginar que eu fosse a única mulher por toda a área industrial, onde vivem centenas de milhares de homens vindos de países como Índia, Nepal, Bangladesh e Paquistão.

Encontrei um mercadinho quase em frente ao alojamento e ali comecei a abordar os imigrantes para tentar conversar com eles. Foram dezenas de "nãos" até que esse indiano que vive há dois anos no país topou falar comigo. Ficamos a alguns metros do estabelecimento, com minha presença chamando a atenção de todos. Um homem veio perguntar ao indiano se estava tudo bem e se ele precisava de ajuda. Não entendi se me viu como uma ameaça ou se estava preocupado comigo.

Apesar de todas as denúncias às condições dos alojamentos, o imigrante disse ao Estadão que vivia bem ali. Explicou dividir o quarto com outros três homens e destacou que todos tinham uma cama - "não é beliche", frisou. Contou que havia ainda uma cozinha grande para cada "10 ou 20" quartos. "É melhor do que na Índia. Lá não tem trabalho", afirmou. Ele atua como motorista de caminhão, o mesmo que fazia em seu país natal. Então, também não precisa ficar sob o sol, disse.

No dia seguinte, voltei à zona industrial, um pouco mais cedo para chegar antes do anoitecer. Parei em um restaurante com mesas no que deveria ser a calçada. Ele ficava ao lado e à frente de diferentes alojamentos. Ali, novamente um indiano se dispôs a conversar.

Era Riyas Parapoyil, de 39 anos, e 16 deles no Catar. Falava inglês, árabe, hindi, tâmil e malaiala (ou últimos três, idiomas da Índia) e também trabalhava como motorista de caminhão. Ele contou que ganha 4.500 rials por mês (cerca de R$ 6.400) e envia 3.500 rials para a família.

Costuma ir uma vez por ano para seu país, onde vivem a mulher e o filho de oito anos. O casamento, aliás, ocorreu há 11 anos, quando ele já estava no exterior. Nunca morou, portanto, com a mulher. No Catar, além de trabalhar, joga críquete com os amigos às sextas-feiras, único dia de folga. E também não reclamou das condições de vida no Catar. "Na Índia, vivi em lugar piores, mais sujos."

De acordo com a diretora de iniciativa globais da Human Watch Rights (HRW) Minky Worden, as condições de vida dos trabalhadores imigrantes no Catar vêm melhorando desde 2015, quando começaram a ser feitas alterações na legislação trabalhista. As mudanças ocorreram após denúncias de que funcionários das construtoras que erguiam os estádios do Mundial viviam em condições precárias.

"Não havia água suficiente nem cuidado médico. É importante reconhecer as reformas, elas foram importantes. Mas não está claro se continuarão depois da Copa. Elas também são poucas e não são implementadas em muitos casos", diz Minky.

PASSAPORTE CONFISCADO

Foram após as denúncias, por exemplo, que se proibiu o trabalho ao ar livre no verão entre as 10h e as 15h, quando a temperatura pode chegar a 50ºC. Ainda assim, às 8h, é possível que os termômetros no país já estejam passando dos 42ºC. Minky pondera que a mudança faz com que muitos operários trabalhem à noite, quando a iluminação dificulta a execução das obras - o que pode ser perigoso. De fato, é bastante comum ver funcionários de construtoras trabalhando às 23h em Doha.

Uma das alterações mais importantes feitas nos últimos anos foi o fim do sistema "kafala", em que os empregadores eram responsáveis pela ida e permanência do trabalhador no país. Assim, os imigrantes não podiam, por exemplo, mudar de emprego. Segundo Minky, apesar da mudança, ainda há casos de funcionários que têm seus passaportes confiscados pelas companhias e que não são pagos. "Se o empregador detém seu documento, o funcionário não tem como ir embora. Isso é uma forma de tráfico humano e trabalho forçado."

A HRW tem pedido uma indenização não apenas para os operários que foram explorados no país, como também para as famílias de trabalhadores que morreram lá. De acordo com dados levantados pelo jornal inglês The Guardian junto a embaixadas no Catar, 6.500 trabalhadores da Índia, Paquistão, Nepal, Bangladesh e Sri Lanka morreram no país entre 2010 e 2020.

MORTES NOS ESTÁDIOS

Os registros de morte, no entanto, não trazem informações como ocupação do operário ou local de trabalho. Sabe-se que 37 mortos atuavam na construção dos estádio da Copa, mas, segundo a comissão organizadora, 34 deles não morreram por causa do trabalho.

A HRW, porém, questiona esses dados. "O governo do Catar quer dizer que muitas das mortes foram incertas. Não foram permitidas autópsias. Mas sabemos que alguns jovens morreram por falhas nos rins ou de ataques cardíacos. Não é normal um jovem morrer disso. Então, as mortes podem estar relacionadas a casos sérios de insolação e falta de água", diz Minky.

"O que é certo é que os trabalhadores chegaram saudáveis ao Catar, porque precisaram de atestado médico para viajar, mas não voltaram para seus países. E isso continua acontecendo. Caixões ainda estão voltando para casa", complementa Minky.

Em nota, o governo do Catar afirmou que a reportagem do jornal inglês é "imprecisa" e que os dados da matéria "foram usados para criar manchetes sensacionalistas". Disse que, considerando o tamanho da população estrangeira, a taxa de mortalidade está dentro do patamar esperado.

O governo também destacou que vem implementando reformas trabalhistas, com introdução do salário mínimo, remoção de barreiras para os imigrantes mudarem de emprego, supervisão mais rigorosa no recrutamento e multas para casos de confisco de passaportes, entre outras medidas. Um Fundo de Apoio e Seguro ao Trabalhador foi criado pelo governo para que funcionários sejam pagos se, por acaso, a empresa para a qual trabalham falir. "O fundo desembolsou 600 milhões de rials (R$ 850 milhões) nos últimos dois anos", informa a nota do governo.

JORNALISTA É PRESO APÓS VISITAR ÁREA INDUSTRIAL

O jornalista norueguês Halvor Ekeland esteve no Catar no ano passado e conseguiu entrar em um dos alojamentos de imigrantes. Chegou à área industrial de Doha, pediu autorização na hora para o responsável pelo local e verificou as condições de moradia dos trabalhadores.

Segundo ele, o gerente do alojamento permitiu que ele visse o segundo andar, onde os quartos eram divididos por quatro pessoas. Alguns operários, então, quiseram mostrar suas habitações no terceiro andar. Ali, eram seis trabalhadores por quarto, em um ambiente menor e sem privacidade. "A cozinha e o banheiro eram desagradáveis e sujos, mas era possível viver lá. Não era o padrão que se tem aqui na Noruega, mas era habitável."

Ekeland, que trabalha no canal de TV NRK, contou também ter tido dificuldade para conversar com os imigrantes, sobretudo diante da câmera. Ainda assim, disse ele, todos tinham alguma história para contar, fosse de 12 dias trabalhando sem parar ou de não receber por hora extra.

Um dia e meio após visitar o alojamento, Ekeland e o repórter cinematográfico que estava com ele, Lokman Ghorbani, foram presos. Os dois noruegueses foram, então, separados. Não conseguiram avisar ninguém do que havia ocorrido e tiveram seus celulares apreendidos na hora.

Na delegacia, eles foram interrogados. Tiveram de contar tudo que haviam feito enquanto estavam no país e com quem haviam falado. Em seguida, Ekeland foi colocado em uma cela com outras seis pessoas. O ambiente era de pedra e não havia móveis, apenas um buraco no chão para as necessidades.

Ekeland conversou com os outros presos, todos imigrantes. Não quis contar a história deles, mas afirmou que não eram criminosos. "Eles estavam ali principalmente por algum mal-entendido."

Sem direito a uma ligação ou a um advogado, os jornalistas foram liberados cerca de 32 horas após serem presos. Antes disso, porém, tiveram de assinar um documento em árabe sem saber o que estava escrito. As câmeras, os computadores e os cartões de memória foram devolvidos sem as imagens que haviam sido feitas. Segundo a polícia os informou, o gerente do alojamento que eles visitaram é que havia acionado as autoridades. Também foram informados de que haviam sido presos por não terem permissão do governo para filmar em lugares públicos.

Ekeland, porém, conta que eles tinham pedido a autorização antes de sair da Noruega. No Catar, souberam que o documento obtido permitia apenas que eles entrassem com o equipamento de filmagem no país, mas não autorizava a captação de imagens em lugares públicos.

"Não fomos para o Catar para fazer um grande escândalo. Fomos para ver qual era a situação dos imigrantes, mas acabamos com um grande escândalo sobre liberdade de imprensa. O Catar pode ter se tornado um lugar melhor para trabalhadores. Mas a minha história mostra que ainda há muita coisa que precisa melhorar", disse o jornalista.

Eu também fui proibida de fazer imagens com um celular da fachada do estádio Cidade Educação. Como a comissão organizadora havia dito que não poderíamos conhecer o local por dentro, fui apenas gravar como ele era por fora. Um segurança logo me proibiu de continuar trabalhando. Entrei em contato com a comissão organizadora, que solicitou a ele, por videochamada, que me deixasse fazer as imagens. O segurança, então, pediu para ver o documento do assessor da comissão. Era uma sexta-feira, fim de semana no Catar e o documento estava no escritório. Tive de desistir e voltar no dia seguinte.

O governo catari, porém, afirmou, em nota, que o país recebe centenas de jornalistas e ONGs internacionais todos os anos para "reportar livremente e objetivamente". "Nenhum jornalista jamais foi detido quando as leis do país foram respeitadas", disse. De acordo com a nota, os jornalistas noruegueses foram detidos por invasão de propriedade privada e filmagem sem permissão. "Como em quase todos os países, a invasão é contra lei no Catar. A equipe (de TV) estava ciente disso antes de entrar na propriedade."

MULHERES E POPULAÇÃO LGBT+ TAMBÉM TÊM DIREITOS CERCEADOS

Além da violação de direitos humanos de trabalhadores imigrantes e de censura de imprensa, mulheres e a população LGBT+ também têm direitos cerceados no Catar. Relações com pessoas do mesmo sexo são proibidas e podem resultar em prisão. Já as mulheres precisam de autorização de seus tutores masculinos, que podem ser maridos, pais ou irmãos, entre outros, para exercer direitos como casar, viajar para o exterior e obter alguns cuidados de saúde reprodutiva.

Segundo a organização internacional Human Rights Watch, porém, a tutela masculina não é um sistema legal coeso no país. Há uma mistura de leis e práticas que contradizem a Lei de Família e a Constituição, que prevê igualdade perante a lei sem discriminação de acordo com o gênero.