BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) - Uma disputa no Ministério da Fazenda criou um impasse nas negociações do projeto de lei que busca restabelecer regras mais rigorosas nos julgamentos tributários do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais).

Auditores da Receita Federal procuraram o relator do projeto, deputado Beto Pereira (PSDB-MS), para tentar ampliar seus próprios poderes em acordos com devedores interessados em quitar débitos com o Fisco, processo chamado de transação tributária –avançando sobre um terreno que hoje é da PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional).

Segundo diferentes interlocutores do governo ouvidos pela reportagem, os representantes da Receita agiram à revelia do ministro Fernando Haddad (Fazenda), que já havia pedido internamente aos órgãos que deixassem a questão de lado para não contaminar um projeto considerado pelo governo estruturante e necessário para o reequilíbrio das contas públicas.

Agora, além de Haddad, outros ministros precisaram entrar no circuito para convencer o relator a desistir da mudança e evitar que a briga interna inviabilize o avanço da proposta. Segundo relatos, participam das conversas Alexandre Padilha (Relações Institucionais), Rui Costa (Casa Civil) e Jorge Messias (Advocacia-Geral da União).

Em conversas internas sobre o parecer, Beto Pereira tem ressaltado que parte dos encargos arrecadados pela PGFN nos acordos ajuda a bancar o fundo que abastece os honorários de sucumbência –uma espécie de bônus pago à advocacia da União, incluindo os procuradores da Fazenda, cujo valor médio se aproxima dos R$ 10 mil mensais.

O deputado manifesta intenção de estender a possibilidade de negociação para a Receita, embora a própria PGFN já tenha apresentado proposta no passado para retirar os encargos (que financiam os honorários) das transações.

Críticos da investida da Receita acusam o órgão de tentar ampliar as transações feitas sob seu guarda-chuva para turbinar o próprio bônus de eficiência da categoria, que até agora corresponde a R$ 3 mil mensais –mas o valor pode subir diante da regulamentação feita no início de junho pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Além disso, há quem veja um risco moral, uma vez que a Receita terá poder para lançar cobranças e depois negociar seu pagamento.

Do ponto de vista político, aumentar as opções de transação é atrativo aos contribuintes porque cria uma espécie de concorrência entre os dois órgãos: fecha o acordo quem der o maior desconto.

A reportagem procurou o relator para saber se a mudança na transação em favor da Receita Federal será incluída na versão final do parecer ou se o governo pediu para deixar a questão de fora do projeto, mas não houve resposta. O Ministério da Fazenda não se manifestou até a publicação deste texto.

No ano passado, ainda no governo Jair Bolsonaro (PL), a Receita já havia deflagrado uma articulação autônoma semelhante. O então secretário do Fisco, Julio Cesar Vieira Gomes, atuou em sintonia com o sindicato da categoria para obter, no Congresso, a aprovação de um dispositivo que abriu a possibilidade da transação tributária na Receita –até então uma exclusividade da PGFN.

Na época, como mostrou a Folha de S.Paulo, Vieira Gomes disse que a realização dos acordos "passou a ser uma diretriz" do órgão, em contraste com a resistência histórica da Receita a programas de refinanciamento de dívidas –considerados por auditores um prêmio a maus pagadores e um estímulo à inadimplência dos contribuintes.

Durante a tramitação do projeto de 2022, o então ministro Paulo Guedes (Economia) questionou o interesse do Fisco na transação. Para evitar uma disputa entre o órgão e a PGFN, ficou estabelecida uma trava: a Receita só poderia negociar o pagamento com desconto de débitos em fase de contencioso administrativo, ou seja, que são alvo de algum litígio –mas ainda não foram inscritos na Dívida Ativa da União.

Pelas regras atuais, valores não pagos pelos contribuintes são inscritos na Dívida Ativa da União em 90 dias após o lançamento da obrigação. Trata-se de uma janela curta. Além disso, alguns atos ficam sujeitos ao aval da PGFN –por isso, a articulação dos auditores da Receita busca flexibilizar as travas e assegurar maior autonomia nos acordos.

O atual secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, teve um encontro na semana passada com o relator para tratar do tema. Segundo interlocutores, o secretário transmitiu a mensagem de que a lei merece ajustes, mas a discussão está em andamento com a PGFN e ainda não há posição fechada do órgão sobre o assunto. A reunião foi registrada pelo Sindifisco (sindicato dos auditores fiscais), que também enviou representantes para conversar com o relator em encontro separado.

No governo, há o temor de que o impasse inviabilize uma das principais medidas do pacote de Haddad para tentar reequilibrar as contas públicas.

A iniciativa busca retomar o chamado voto de qualidade, que garante à Fazenda o poder de desempate em disputas tributárias no Carf. O dispositivo foi derrubado em 2020 pelo Congresso, ampliando as perdas da União no tribunal –que já servia como instrumento de manobra de grandes empresas para adiar por anos o recolhimento de tributos.

Na última quarta (28), Haddad recebeu Pereira para tratar do tema na sede do Ministério da Fazenda. Embora ministros do governo se mostrem otimistas com a possibilidade de convencer o relator a desistir da mudança na transação, o texto do parecer ainda não foi apresentado aos membros do Executivo, o que tem alimentado desconfianças.

Além disso, aliados de Lula ponderam que o impasse pode ser judicializado –o que prejudicaria o andamento das próprias medidas.

Há um questionamento legal sobre a inclusão da Receita Federal entre os negociadores da transação tributária. Técnicos ressaltam que a Constituição prevê expressamente que a AGU, diretamente ou por meio de órgãos vinculados (como a PGFN), é a instituição que representa a União judicialmente e extrajudicialmente –não cabendo extensão desse papel ao Fisco.

O projeto deve ser o primeiro item apreciado no plenário da Câmara na próxima semana. A iniciativa tramita em regime de urgência e, por isso, tranca a pauta de votações desde o último dia 21.

Segundo o próprio presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), a primeira semana de julho seria uma "semana intensiva" em relação à pauta econômica do governo, com previsão de sessões em plenário de segunda à sexta-feira.