Amauri Meireles (*)
Atualmente no Brasil, muito se fala de Economia 4.0 e, no rastro, Advocacia 4.0, Educação 4.0, Gestão 4.0, Indústria 4.0, que significa, para os técnicos, uso de TI (inteligência artificial) fomentada por data base com codificação preditiva e learning machine (aprendizagem da máquina). Ou é aplicação probabilística através de sistema de informações, que tem seus algoritmos adaptados aos novos questionamentos realizados pelo seu administrador. Ou, ainda, (mais fácil) é juntar inteligência artificial, IoT (Internet das Coisas) e análises digitais para dirigir ações mundiais. Para nós, leigos, uma explicação bem rasa. O mundo assistiu à primeira revolução industrial, no final do século XVIII, quando se usaram motores a vapor e água como fonte de energia. A segunda revolução industrial ocorreu entre 1870 e 1914, com a utilização de telégrafos, ferrovias e eletricidade nas indústrias. A terceira revolução industrial, ocorrida entre 1950 e 1970, é conhecida como Revolução Digital ou Era da Informação, dos eletrônicos, da TI e das telecomunicações. Então “...tendo estas tecnologias como fundação, a indústria 4.0 tende a ser totalmente automatizada a partir de sistemas que combinam máquinas com processos digitais - a fábrica inteligente”.
De repente, a criação de milhares de startups! No lado financeiro, as Fintechs, no jurídico, as Lawtechs. Levanta-se a tese de que, na questão das organizações criminosas (orcrim) podem surgir as ”criminaltechs", para dar suporte à criminalidade 4.0.
Veja-se o resultado da operação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), no RJ, em 2018. Conhecido o valor gasto e estabelecido o nexo de causalidade das ações com eventual redução da criminalidade, conclui-se que não foi bem-sucedida (até pelos dados do IPEA). Por que? Possivelmente, porque se utilizaram tática e gerenciamento militares, na linha amigo/inimigo, sem um adequado planejamento de "defesa social". O erro duplo estaria na concepção de combate ao inimigo e, o mais grave, no fato de a pífia operacionalização das políticas públicas, para redução da distopia estatal (funcionamento anômalo de órgãos estatais), não acompanhar os procedimentos táticos e imediatos das operações de policiamento ostensivo e de choque, no embate com facções criminosas. Algo parecido já ocorrera, enfraquecendo a ideia, até mais bem elaborada, das UPPs.
O ex-ministro Moro entendeu parcialmente o problema. E, em razão de consequências das ações policias contra doleiros, no âmbito da Lava Jato, de certo sucesso, tentou atacar as orcrim, como organizações também financeiras. Faltou-lhe exatamente o que a velha doutrina militar possui: pensamento tático e logístico.
Com o ambiente de negócios do crime já instalado (inclusive de forma transnacional, como se vê da vinculação da máfia italiana com organizações criminosas cariocas e paulistas, de traficantes a milicianos; com um fluxo constante de material, armas e drogas, dentro da cadeia internacional de produção/serviços, com financiamento abundante através das transações financeiras internacionais - corrupção, sobrepreço em transações, tipo esportes, apostas, bitcoin, comércio militar não contabilizado, tráfico de drogas, pessoas, bancos, etc), a criação de milhares de startups e franquias de grandes conglomerados do crime, na forma de facções ou pequenas orcrim, acontecerá de forma disseminada e, portanto, cada pequena orcrim terá apenas de se acoplar a uma das centenas de canais oferecidos para divulgar o seu produto. Logo, um novato empreendedor do crime pode verificar a relação de oferta e demanda de produtos criminosos (drogas, armas, proteção, evasão fiscal, moradia, órgãos humanos, etc) em uma determinada região e buscar com a empresa de crime local uma "sociedade/parceria" para o desenvolvimento da criminaltech.
Se a ideia for boa, a orcrim maior permitirá (e até indicará) os acessos ao crédito e ao mercado, recebendo uma gorda porcentagem. Lamentavelmente, com auxílio de certas bancas de advogados e contadores especializados no tema e disponíveis no mercado, bem como de contatos no Estado, que as orcrim já possuem (quase em um sistema de cooperativa), a empresa crescerá sob a égide da livre iniciativa criminosa.
Se a empresa tiver sucesso e ficar maior que o primeiro arco de orcrims, haverá problemas de contrafação, concorrência "desleal", briga pelo market share (quota de mercado). Isso aumentará a violência no ambiente e, observando o sistema de controle, as orcrims maiores (inclusive os financiadores) terão de intervir, para que o ambiente de negócios não seja contaminado, resultando no aumento desenfreado de confrontos.
O problema estaria em uma faceta do sistema capitalista, que evidencia ser, por natureza, autofágico, ou seja, ele vive de crises periódicas provocadas também pelo excesso de ganância, busca de poder e controle. A tendência é o poder subir à cabeça de quem está em ascensão, perdendo o contato com a realidade e saindo do controle do sistema criminoso, exatamente em razão de pensar que não pode ser atingido. Talvez as pistas sejam deixadas por ele próprio.
A ideia é dar efetividade à concertação de políticas públicas e ação policial, para aumentar o risco da atividade criminosa e diminuir sua lucratividade na base, com ênfase para o trabalho de inteligência. Desenhado, conhecido o fluxo do dinheiro (que poderá chegar aos bancos, ao Estado, ao comércio exterior, ao futebol, etc) há o ataque às artérias que estão se formando, antes de se capilarizarem. É claro que isso já foi pensado e não é realizado por falta de gestão eficiente, mas, entende-se, isso pode ser diferente. Basta planejar, observando, também, características de um ambiente de negócio, embasado em uma "Polícia 4.0".
E isso já está passando da hora, pois a Sociedade 5.0, “...a tecnologia centrada na humanidade para nos ajudar a aproveitar a vida da melhor maneira possível”, conforme Yoko Ishikura, consultora do Fórum Econômico Mundial, já está batendo em nossa porta. Para isso, ela defende três valores-chave: sustentabilidade, abertura e inclusão.
É tudo que a Polícia quer! Afinal, na medida em que a Policiologia se fortalece, fica evidente que a criminalidade é um macrofenômeno sociopolítico e, não, apenas, um microfenômeno policial
(*) Coronel Veterano da PMMG
Foi Comandante da Região Metropolitana de BH