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'O oficial e o espião' reconstitui o mais rumoroso caso de perseguição e injustiça praticadas pelo Estado francês. Condenação do diretor por estupro levantou onda de protesto ao filme
Logo no início de O oficial e o espião, o longa de Roman Polanski que estreia nesta quinta-feira (12) no Brasil, Alfred Dreyfus (Louis Garrel) confronta seu professor Georges Picquart (Jean Dujardin), o único que lhe destina notas baixas na Escola de Guerra. O aluno quer saber se a avaliação desfavorável que Picquart faz de seu desempenho tem relação com os sentimentos antissemitas do professor.
Picquart não nega seu antissemitismo, mas assegura ao judeu Dreyfus ser capaz de fazer um julgamento de seus alunos isento da influência de suas convicções sobre raça e religião. A cena final do longa colocará novamente os dois homens frente a frente, num extraordinário diálogo que delineia o cerne da atitude de Dreyfus. Ele exige o que é justo. Não quer nada além disso, mas também não aceitará calado nada aquém.
Entre um diálogo e outro, Polanski reconstitui o histórico (e rumorosíssimo) “Caso Dreyfus”, que dividiu a França na virada do século 19 para o 20, ao trazer para a esfera pública um apaixonado debate em torno da imparcialidade – ou a correção de caráter, que é o mesmo dito em outros termos – exigida para a aplicação do devido processo legal. É a capacidade humana de fazer uma justiça digna desse nome, na verdade, o tema de O oficial e o espião, no qual Polanski apenas dá a impressão de falar sobre o passado, quando, na verdade, coloca o dedo numa ferida aberta do presente.
O fato de o diretor ter uma condenação pelo crime de estupro de uma adolescente e ser acusado por outras mulheres de tê-las violentado, o que ele nega, colocou o próprio filme, o direito de Polanski fazê-lo e de ser premiado por isso em questão, desde sua estreia, no Festival de Veneza, no ano passado. Mas, antes de tratarmos da controvérsia provocada pela existência do longa, vamos a ele.
Capitão do Exército considerado brilhante, Dreyfus é acusado de espionagem e condenado, em 1895. Perde a sua patente e é degredado para a Ilha do Diabo, na Guiana Francesa, onde seus vigias são proibidos de lhe dirigir a palavra. O “espião” Dreyfus se torna um fantasma.
Georges Picquart, que havia tido um papel secundário na condenação de Dreyfus, é promovido a coronel e assume a área de Inteligência das Forças Armadas, onde passa a ter acesso a todos os arquivos confidenciais sobre suspeitos e processos de espionagem.
Por causa de sua nova função, Picquart se dá conta de que Dreyfus é inocente e identifica o verdadeiro espião. A reação do coronel responde à lógica da retidão: ele informa aos seus superiores que o caso deve ser reaberto, que Dreyfus deve ser trazido de volta da Ilha do Diabo e submetido a novo julgamento, à luz dos fatos que incriminam outro oficial (não judeu) do Exército.
Louis Garrel vive o capitão judeu que é degredado para a Ilha do Diabo, na Guiana Francesa (foto: Califórnia Filmes/Divulgação)
O comando das Forças Armadas, no entanto, prefere manter o caso encerrado e escantear Picquart, destinando-o a missões ora irrelevantes, ora perigosíssimas, mas sempre distantes do centro do poder. Depois de um longo tempo aceitando a punição disfarçada, o coronel parte para o contra-ataque.
O movimento que deslancha a reviravolta no “Caso Dreyfus” é a publicação pelo escritor Émile Zola (1840-1902) da carta aberta ao presidente francês intitulada J'accuse (Eu acuso), título original do filme em francês. Ao expor toda a trama que julgou e condenou Dreyfus injustamente e seu viés antissemita, nomeando cada um dos envolvidos, Zola também se tornou alvo de um julgamento – e de uma condenação – por difamação. Passam-se anos até que o processo de Dreyfus seja finalmente revisto.
Polanski narra essa história com a gramática de um cinema clássico. É um filme de tribunal e de espionagem, recheado de flashbacks e subtramas. Para interpretar personagens cujas ações representam motivações arquetípicas, como os desejos de justiça e de vingança e as noções de honra e covardia, o diretor escalou diversos atores da Comédie Française, experts, portanto, em dar espessura humana a esse tipo de papel.
Trata-se de um cuidado fundamental para que não assumam um tom caricato frases como a dita por um dos oficiais do Exército na cerimônia de degradação de Dreyfus, acompanhada por um público em fúria: “Antes, os romanos atiravam os cristãos aos leões. Agora, nós mandamos os judeus. Veja que progresso!”.
A carta aberta de Émile Zola ao presidente da França é o texto histórico que provocou a reviravolta do caso (foto: Califórnia Filmes/Divulgação)
Elegante sem ser pomposo – Polanski chega a fazer figuração em uma cena de divertimento mundano –, o filme tem um ritmo que não se deixa comprometer por suas mais de duas horas de duração (132 minutos) e é capaz de manter o espectador interessado, sem afundá-lo em excessos de informação. Ponto para o claro fio condutor da trama, que Polanski escreveu em parceria com o autor do livro no qual o filme se baseia, Robert Harris.
Quando O oficial e o espião estreou em competição pelo Leão de Ouro em Veneza, a cineasta argentina Lucrecia Martel, presidente do júri, se recusou a comparecer à sessão de gala, afirmando que não aplaudiria um homem condenado por estupro. Os produtores do longa protestaram e apontaram na atitude de Martel uma condenação antecipada ao filme, sem dar a ele nem sequer o direito de julgamento.
No fim da disputa, o longa de Polanski recebeu o prêmio da crítica e o Leão de Prata (Grande Prêmio do Júri). Coringa, de Todd Philipps, ficou com o Leão de Ouro. Com essa decisão, Martel talvez tenha provado que, embora possa tomar caminhos sinuosos, a faculdade de julgar consegue se sobrepor às paixões. Mas isso requer coragem e inteligência, atributos que a diretora argentina tem de sobra.
Um filme no banco dos réus
Sucesso de público na França, O oficial e o espião recebeu 12 indicações ao prêmio anual do cinema francês, o César. Grupos feministas, sobretudo o Osez le Feminisme (Ouse o Feminismo), protestaram contra as indicações e anunciaram que fariam atos no local da cerimônia de entrega dos prêmios, ocorrida no último dia 28.
Diante dessa reação, Polanski e sua equipe decidiram não comparecer. “Lamento tomar esta decisão, de não enfrentar um tribunal de opinião autoproclamado, disposto a pisotear os princípios do Estado de direito para que o irracional triunfe novamente”, disse Polanski, de 86 anos, em nota.
No comunicado, ele afirmou ainda: “Tenho que proteger minha família, minha mulher e meus filhos, que são submetidos a ofensas, afrontas”.
Quando da eclosão da polêmica, Alain Terzian, presidente da Academia Francesa, responsável pela realização do César, afirmou que a premiação “não deve adotar posições morais” e acrescentou: “Se eu não estiver equivocado, 1,5 milhão de franceses assistiram ao filme”. Pouco depois, a intensidade das reações levou à queda da direção da Academia Francesa.
“A mídia e as redes sociais apresentam nossas 12 indicações como um presente da diretoria da Academia, um gesto autoritário que teria provocado sua demissão. Ignoram assim o voto secreto de 4.313 profissionais, que são os únicos que decidem as indicações, e os mais de 1,5 milhão de espectadores que foram assistir ao filme na França”, afirmou Polanski.
O oficial e o espião obteve três vitórias no César – melhor figurino, roteiro adaptado, e direção. Ao ser anunciado o prêmio para Polanski, a atriz Adèle Haenel (Retrato de uma jovem em chamas) se retirou da sala em protesto. Ela havia afirmado que o reconhecimento ao diretor equivaleria a “cuspir na cara das vítimas”.
Haenel, de 31 anos, denunciou no ano passado o diretor Christophe Ruggia de tê-la assediado de seus 12 aos 15 anos. Ela filmou com ele o longa Les diables, lançado em 2002, e afirma que ele praticou “assédio sexual permanente” com ela durante a rodagem e a divulgação do filme pelo circuito de festivais.
Indicado a melhor ator e ausente da cerimônia, Jean Dujardin, o intérprete do coronel Picquart, escreveu em seu Instagram: “Ao fazer esse filme, eu acreditei, e eu ainda acredito, que fiz mais bem do que mal”.
(Com agências de notícias)
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'O oficial e o espião' reconstitui o mais rumoroso caso de perseguição e injustiça praticadas pelo Estado francês. Condenação do diretor por estupro levantou onda de protesto ao filme
Logo no início de O oficial e o espião, o longa de Roman Polanski que estreia nesta quinta-feira (12) no Brasil, Alfred Dreyfus (Louis Garrel) confronta seu professor Georges Picquart (Jean Dujardin), o único que lhe destina notas baixas na Escola de Guerra. O aluno quer saber se a avaliação desfavorável que Picquart faz de seu desempenho tem relação com os sentimentos antissemitas do professor.
Picquart não nega seu antissemitismo, mas assegura ao judeu Dreyfus ser capaz de fazer um julgamento de seus alunos isento da influência de suas convicções sobre raça e religião. A cena final do longa colocará novamente os dois homens frente a frente, num extraordinário diálogo que delineia o cerne da atitude de Dreyfus. Ele exige o que é justo. Não quer nada além disso, mas também não aceitará calado nada aquém.
Entre um diálogo e outro, Polanski reconstitui o histórico (e rumorosíssimo) “Caso Dreyfus”, que dividiu a França na virada do século 19 para o 20, ao trazer para a esfera pública um apaixonado debate em torno da imparcialidade – ou a correção de caráter, que é o mesmo dito em outros termos – exigida para a aplicação do devido processo legal. É a capacidade humana de fazer uma justiça digna desse nome, na verdade, o tema de O oficial e o espião, no qual Polanski apenas dá a impressão de falar sobre o passado, quando, na verdade, coloca o dedo numa ferida aberta do presente.
O fato de o diretor ter uma condenação pelo crime de estupro de uma adolescente e ser acusado por outras mulheres de tê-las violentado, o que ele nega, colocou o próprio filme, o direito de Polanski fazê-lo e de ser premiado por isso em questão, desde sua estreia, no Festival de Veneza, no ano passado. Mas, antes de tratarmos da controvérsia provocada pela existência do longa, vamos a ele.
Capitão do Exército considerado brilhante, Dreyfus é acusado de espionagem e condenado, em 1895. Perde a sua patente e é degredado para a Ilha do Diabo, na Guiana Francesa, onde seus vigias são proibidos de lhe dirigir a palavra. O “espião” Dreyfus se torna um fantasma.
Georges Picquart, que havia tido um papel secundário na condenação de Dreyfus, é promovido a coronel e assume a área de Inteligência das Forças Armadas, onde passa a ter acesso a todos os arquivos confidenciais sobre suspeitos e processos de espionagem.
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Louis Garrel vive o capitão judeu que é degredado para a Ilha do Diabo, na Guiana Francesa (foto: Califórnia Filmes/Divulgação)
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O movimento que deslancha a reviravolta no “Caso Dreyfus” é a publicação pelo escritor Émile Zola (1840-1902) da carta aberta ao presidente francês intitulada J'accuse (Eu acuso), título original do filme em francês. Ao expor toda a trama que julgou e condenou Dreyfus injustamente e seu viés antissemita, nomeando cada um dos envolvidos, Zola também se tornou alvo de um julgamento – e de uma condenação – por difamação. Passam-se anos até que o processo de Dreyfus seja finalmente revisto.
Polanski narra essa história com a gramática de um cinema clássico. É um filme de tribunal e de espionagem, recheado de flashbacks e subtramas. Para interpretar personagens cujas ações representam motivações arquetípicas, como os desejos de justiça e de vingança e as noções de honra e covardia, o diretor escalou diversos atores da Comédie Française, experts, portanto, em dar espessura humana a esse tipo de papel.
Trata-se de um cuidado fundamental para que não assumam um tom caricato frases como a dita por um dos oficiais do Exército na cerimônia de degradação de Dreyfus, acompanhada por um público em fúria: “Antes, os romanos atiravam os cristãos aos leões. Agora, nós mandamos os judeus. Veja que progresso!”.
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Elegante sem ser pomposo – Polanski chega a fazer figuração em uma cena de divertimento mundano –, o filme tem um ritmo que não se deixa comprometer por suas mais de duas horas de duração (132 minutos) e é capaz de manter o espectador interessado, sem afundá-lo em excessos de informação. Ponto para o claro fio condutor da trama, que Polanski escreveu em parceria com o autor do livro no qual o filme se baseia, Robert Harris.
Quando O oficial e o espião estreou em competição pelo Leão de Ouro em Veneza, a cineasta argentina Lucrecia Martel, presidente do júri, se recusou a comparecer à sessão de gala, afirmando que não aplaudiria um homem condenado por estupro. Os produtores do longa protestaram e apontaram na atitude de Martel uma condenação antecipada ao filme, sem dar a ele nem sequer o direito de julgamento.
No fim da disputa, o longa de Polanski recebeu o prêmio da crítica e o Leão de Prata (Grande Prêmio do Júri). Coringa, de Todd Philipps, ficou com o Leão de Ouro. Com essa decisão, Martel talvez tenha provado que, embora possa tomar caminhos sinuosos, a faculdade de julgar consegue se sobrepor às paixões. Mas isso requer coragem e inteligência, atributos que a diretora argentina tem de sobra.
Um filme no banco dos réus
Sucesso de público na França, O oficial e o espião recebeu 12 indicações ao prêmio anual do cinema francês, o César. Grupos feministas, sobretudo o Osez le Feminisme (Ouse o Feminismo), protestaram contra as indicações e anunciaram que fariam atos no local da cerimônia de entrega dos prêmios, ocorrida no último dia 28.
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O oficial e o espião obteve três vitórias no César – melhor figurino, roteiro adaptado, e direção. Ao ser anunciado o prêmio para Polanski, a atriz Adèle Haenel (Retrato de uma jovem em chamas) se retirou da sala em protesto. Ela havia afirmado que o reconhecimento ao diretor equivaleria a “cuspir na cara das vítimas”.
Haenel, de 31 anos, denunciou no ano passado o diretor Christophe Ruggia de tê-la assediado de seus 12 aos 15 anos. Ela filmou com ele o longa Les diables, lançado em 2002, e afirma que ele praticou “assédio sexual permanente” com ela durante a rodagem e a divulgação do filme pelo circuito de festivais.
Indicado a melhor ator e ausente da cerimônia, Jean Dujardin, o intérprete do coronel Picquart, escreveu em seu Instagram: “Ao fazer esse filme, eu acreditei, e eu ainda acredito, que fiz mais bem do que mal”.
(Com agências de notícias)