Vencedor do prêmio de Melhor Roteiro e da Palma Queer (melhor obra de temática LGBT) em Cannes, vitorioso em outros festivais independentes e presente no Globo de Ouro, o longa habilmente dirigido e roteirizado pela francesa Céline Sciamma é belo e forte. Belo como as pinturas de Marianne (Noémie Merlant), forte como a postura de Héloïse (Adèle Haenel), as protagonistas de um drama lésbico numa França pré- Revolução, patriarcal e conservadora do século 18.
O filme entrou em cartaz na quinta-feira passada, junto com Adoráveis mulheres, dirigido por Greta Gerwig. Nenhuma mulher concorre a melhor direção nesta edição do Oscar. Não é novidade. Por sinal, nos últimos dez anos, apenas uma vez, entre 50 chances, uma mulher figurou entre os candidatos na maior categoria individual. E foi justamente Greta, com Lady bird, em 2018. Mas cumprirei a promessa: este texto é para jogar luz ao Retrato.
A filmografia de Sciamma já deixa clara a intenção de buscar o protagonismo feminino. No longa de estreia, Tomboy (2011), o papel principal é de uma menina transgênero de 10 anos com dificuldade de socializar. Temáticas similares se sucedem nos filmes seguintes. Enquanto desnuda fragilidades e opressões, a diretora sempre evidencia a força das mulheres. Logo no início de Retrato de uma jovem em chamas, a pintora Marianne se lança ao mar agitado para buscar uma caixa caída acidentalmente, enquanto o restante da tripulação na pequena embarcação só observa - detalhe: só há homens.
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Foto: Supo Mungam Films/Divulgação |
A caixa tem a tela que norteia o filme. Nela, Marianne precisará pintar o retrato de Héloïse. O quadro é o que resta para a jovem, prometida a um desconhecido marido em Milão, se casar. Justamente por essa lacuna e por se recusar a se entregar a um comum destino da época, ela reluta. Não posa para a pintura, evita exposição e, pior, quase não deixa o rosto à mostra. O último pintor contratado pela mãe para o ofício enlouqueceu e desistiu. Marianne, então, entra de forma estratégica: como dama de companhia. Nas caminhadas, precisará decorar cada linha, cada curva, cada marca de expressão... cada detalhe. E, claro, ser discreta e fingir estar ali por outra razão. “Consegue pintar assim?”, a mãe pergunta. “Mais do que ser dama de companhia”, responde a artista. A pintura é feita às escondidas, num quarto de hóspede.
As caminhadas das duas pelos campos e falésias do lugar remoto trazem um ar de voyeurismo. O tempo é curto, Marianne necessita aproveitar cada brecha para observar Héloïse, que retribui. No entanto, as coisas não são fáceis - e elas, mulheres, sabem muito bem disso. Até o clima não ajuda, com as rajadas de vento que fazem Héloïse se cobrir por inteira ou as tempestades que as deixam em casa. A jovem é fechada: - “Não consigo ver seu sorriso.” - “A raiva sempre acaba ganhando.”
Entre um olhar e outro, surgem revelações (não são necessariamente spoilers, mas se preferir, pule o parágrafo): a de que a irmã de Héloïse se suicidou para evitar um casamento igualmente arranjado, a de que a jovem nunca entrou no mar, nem nunca viu uma orquestra, pois passou anos reclusa num convento. Marianne é também pianista, tem respostas, tem encantos. Mas tem uma missão. E para isso tenta convencer a jovem a aceitar o destino, mesmo a contragosto. Fala das “vantagens” da vida de casada na Itália, dos concertos, das bibliotecas. “Então, de vez em quando eu terei consolos?”, indaga Héloïse.
O longa transcorre sem pressa por pouco mais de duas horas. Há poética nos detalhes, como o quadro em chamas onde só o coração queima. Como o amor, que é fogo que arde. Assim como uma pintura, o filme ganha mais vida e mais cores aos poucos. De camada em camada, com pinceladas de reflexões, de sensualidade, de momentos ora angustiantes, ora de sutileza, a obra (de arte) é concluída com um hipnótico ato final. Uma cena de pura contemplação.
Noémie Merlant e Adèle Haenel atuam de forma visceral. Céline Sciamma é outra entre tantas aptas a disputar grandes premiações, a exemplo do Oscar, que em 92 edições só consagrou uma diretora: Kathryn Bigelow, por Guerra ao terror, em 2010. Eita, descumpri novamente a promessa. Tipo o Oscar, que sempre promete mais representatividade.