Produções originárias de Minas Gerais ocupam as três primeiras posições entre os curtas e médias-metragens mais citados em pesquisa realizada pelo site Cine Festivais, sobre os trabalhos “incontornáveis” realizados na última década.

Dirigido por André Novais Oliveira, do coletivo Filmes de Plástico, “Fantasmas” foi, de longe, o mais lembrado entre os 45 votantes, com 16 citações. Lançado em 2010, o curta é simples em sua realização, mas cheio de significados.

Num plano único, ouvimos dois amigos num diálogo sobre uma ex-namorada, enquanto a imagem mostra um posto de gasolina sem ligação com o que é narrado. Quando voz e imagem se fundem, o filme ganha outro olhar.

“Concordo com o crítico Juliano Gomes, um dos participantes da pesquisa, quando ele diz que ‘Fantasmas’ é o grande filme brasileiro da década em qualquer duração”, analisa Adriano Garrett, crítico e criador do site.

Para ele, Oliveira é o maior nome da década, “com a sofisticação elegante e discreta que já víamos em ‘Fantasmas’ seguindo permeando o seu trabalho”. Aliás, outros dois filmes dele entraram na lista: “Pouco Mais de um Mês” (2013) e “Quintal” (2015).

“ Vale salientar que se trata de um filme de dez anos atrás e que, portanto, já temos uma distância temporal razoável para apontá-lo como um marco contemporâneo do cinema brasileiro”, afirma Garrett, sobre “Fantasmas”.

O segundo curta mais citado (oito menções) foi “NoirBLUE – deslocamentos de uma dança” (2018), que faz uma ponte, por meio da dança, com a cultura africana. A direção é de Ana Pi, uma artista coreográfica da imagem.

O terceiro posto foi dividido entre “Kbela” (2015), da cineasta fluminense Yamin Thayná, e “República” (2020), da mineira Grace Passô, que fala de um Brasil que não existe de fato. Cada um teve sete menções.

“Grace Passô é um caso bem particular de uma grande dramaturga e diretora teatral que transitou de modo brilhante para o cinema, primeiro como atriz e agora como cineasta”, registra Garrett, ao comentar as participações mineiras na pesquisa.

“Se no caso da Filmes de Plástico é possível apontar características formais/temáticas convergentes ao longo dessa última década, entendo que é mais difícil fazer o mesmo acerca de filmes de outros realizadores do Estado”, analisa.

O crítico entende que são todos casos individuais difíceis de se situar dentro de um conjunto geral do “cinema mineiro”. Mas é fato, ele diz, “que vieram do estado algumas das produções mais instigantes da última década”.

Entre os outros trabalhos mencionados estão “Estado Itinerante”, de Ana Carolina Soares, “Sete Anos em Maio”, de Affonso Uchôa, “Nada”, de Gabriel Martins, “A Retirada para um Coração Bruto” e “Alma Bandida”, ambos de Marco Antônio Pereira.

 

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"NORBlue", de Ana Pi, segundo colocado
Entrevista / Adriano Garrett

 

Quais foramos critérios desta seleção para se chegar aos filmes incontornáveis da década?

Antes de falar sobre o levantamento “Curtas e Médias Brasileiros Incontornáveis – 2010-2020”, acho importante pontuar que ele complementa duas outras iniciativas que desenvolvi ao longo de 2020 e que têm como foco a produção de curtas e médias-metragens brasileiros. A primeira delas é o podcast Curtas Brasileiros, no qual, a cada episódio, eu recebo um especialista (entre críticos, curadores, cineastas e pesquisadores) para conversar sobre curtas e médias-metragens nacionais de todas as épocas - até o momento foram publicados 12 episódios, que podem ser encontrados no feed do Cine Festivais nos principais tocadores de podcasts. A segunda iniciativa foi o curso Curtas Brasileiros Contemporâneos, que ministrei ao longo do ano em parceria com instituições como o Centro Cultural São Paulo e a ABD Capixaba e os festivais Olhar de Cinema e Curta Santos, e que também teve edições particulares (sempre de modo online).

A partir dessas duas iniciativas se cristalizou para mim o entendimento de que o período entre 2010 e 2020 trouxe transformações muito relevantes para o cenário audiovisual brasileiro. Houve, primeiramente, a transição definitiva do padrão película para o padrão digital, que possibilitou um acesso mais barato aos equipamentos de produção e pós-produção. Somou-se a isso o grande aumento do número de cursos de audiovisual e a descentralização geográfica da produção (particularmente através de políticas públicas como a criação do Fundo Setorial do Audiovisual). Tais fatores anunciaram um caminho irreversível rumo a uma maior diversidade estética, geográfica, racial, de classe e de gênero em nossa produção cinematográfica, que se fez notar de modo pujante e particular na produção contemporânea de curtas-metragens. No meu ponto de vista isso se deve a muitos fatores, entre os quais o menor custo para viabilizar essas produções (em comparação aos longas-metragens) e as possibilidades múltiplas de trato com a linguagem que a narrativa curta propicia.

Pensando nessa importância, convidei profissionais da crítica, da realização, da curadoria e da academia para que respondessem ao seguinte questionamento: “em sua visão, quais são os três curtas e médias-metragens brasileiros incontornáveis produzidos entre 2010 e 2020? Por quê?” Queria, desse modo, tensionar a tão comum noção de “melhores filmes” e colocar para os votantes uma provocação: afinal, o que seria um filme “incontornável”? Olhando para o resultado final, destaco como o entendimento desse termo variou de participante para participante. 

Também pedi para que as escolhas fossem acompanhadas de textos reflexivos, almejando assim que o levantamento gerasse pensamento e instigasse os leitores a conhecer esses filmes. A pesquisa “Curtas e Médias Brasileiros Incontornáveis – 2010-2020”, realizada pelo Cine Festivais, contou com 45 participantes, que citaram ao todo 79 filmes. 


Se não me engano, são 16 produções mineiras - e ocupando as três primeiras colocações entre os mais citados. Como você analisa esta grande participação do Estado? O que tem sido feito aqui é muito particular?

Em 2010, "Fantasmas", de André Novais Oliveira, foi exibido na Mostra Foco, em Tiradentes, e "Contagem", de Gabriel Martins e Maurílio Martins, foi selecionado e premiado no Festival de Brasília. Embora não sejam os primeiros filmes dos diretores e nem da Filmes de Plástico, foram os trabalhos que alçaram a produtora mineira a um lugar de destaque do qual nunca mais saiu.

Se no caso da Filmes de Plástico é possível apontar características formais/temáticas convergentes ao longo dessa última década, entendo que é mais difícil fazer o mesmo procedimento acerca de filmes de outros realizadores produzidos no estado. Affonso Uchôa e Juliana Antunes, por exemplo, tiveram primeiro destaque com longas-metragens (casos de "A Vizinhança do Tigre" e "Baronesa", respectivamente) para depois realizarem curtas e médias dos mais interessantes ("Sete Anos em Maio" e "Plano Controle"). Grace Passô é um caso bem particular de uma grande dramaturga e diretora teatral que transitou de modo brilhante para o cinema, primeiro como atriz e agora como cineasta ("República" e "Vaga Carne"). Ana Pi tinha sua trajetória bem-sucedida no universo da dança e da performance quando deu de presente ao cinema este grande filme chamado "NoirBLUE". São todos casos individuais que tenho dificuldade de situar dentro de um conjunto geral do “cinema mineiro”, mas é fato que veio do estado algumas das produções mais instigantes da última década.

Três filmes são assinados por André Novais, inclusive o primeiro colocado. Ele é o grande nome da década?

Um fato a ser destacado é que "Fantasmas" teve mais do que o dobro de menções (17 a 8) que o segundo colocado no levantamento, "NoirBLUE – deslocamentos de uma dança". Vale salientar que se trata de um filme de dez anos atrás e que, portanto, já temos uma distância temporal razoável para apontá-lo como um marco contemporâneo do cinema brasileiro.

Concordo com o crítico Juliano Gomes, um dos participantes da pesquisa, quando ele diz que "Fantasmas é o grande filme brasileiro da década em qualquer duração” - o que não desmerece em nada a produção posterior do próprio André Novais Oliveira tanto em curtas (como "Pouco Mais de Um Mês" e "Quintal") quanto em longas-metragens ("Ela Volta na Quinta" e "Temporada"). Por isso penso que sim: André é o grande nome da década, e a sofisticação elegante e discreta que já víamos em Fantasmas segue permeando o seu trabalho.

 Interessante observar que os três primeiros colocados são assinados por diretores negros. Como você analisa esse fator? Podemos dizer que, à medida que se teve uma preocupação com diversidade, passamos a temas e olhares jamais abordados?

Em um artigo intitulado “Kbela e Cinzas: O Cinema Negro no Feminino, do Dogma Feijoada aos Dias de Hoje”, publicado em 2016, a curadora e pesquisadora Janaína Oliveira apontava que “o cinema negro é um projeto em construção no Brasil”. Em 2018, apenas dois anos depois, a mesma Janaína defendeu, no catálogo do 20º FestCurtasBH, que o cinema negro havia se tornado “um movimento afirmado e propagado em diferentes regiões do país, com avanços estéticos, políticos e numéricos”. 

Trago essa referência para sustentar que sim, um dos fatos mais marcantes desse período na produção brasileira de curtas-metragens foi a constituição e a visibilidade adquirida por um corpo notável e diverso de realizadoras e realizadores negros. 

Em termos historiográficos, cito dois momentos que consolidaram essa percepção: a mostra “Cinema Negro: Capítulos de Uma História Fragmentada”, com curadoria de Heitor Augusto, realizada em 2018 no 20º FestCurtasBH, e a mostra “Soul in the Eye, Zózimo Bulbul's legacy and contemporary black Brazilian cinema”, realizada em 2019 no Festival de Roterdã, com curadoria de Janaína Oliveira, Tessa Boerman e Peter van Hoof.

Em termos estéticos, essa transformação trouxe imagens e sons inaugurais, que jamais haviam sido vistos/ouvidos nos circuitos institucionais do cinema brasileiro. Cito três exemplos: os planos gerais retratando cidades periféricas de um modo afirmativo, como "Contagem" (primeiro plano de "Contagem") e Ceilândia (primeiro plano de "Rap, o Canto da Ceilândia", de Adirley Queirós); os sons particulares do pentear de cabelos de pessoas negras, como em "Kbela", de Yasmin Thayná, e "Enraizadas", de Juliana Nascimento e Gabriele Roza; e o trato com o tempo que se dissocia de noções cartesianas de passado/presente/futuro e se liga a temporalidades de culturas africanas, como em "NoirBLUE" e "A Morte Branca do Feiticeiro Negro", de Rodrigo Ribeiro.