A cadela, longa lançado em 1931, na época da conversão do cinema silencioso ao sonoro, tem sessão seguida de debate promovido pela Escola Brasileira de Psicanálise
“Sobretudo não venha ver esse filme, que é horrível!” Um anúncio assim foi colocado na entrada do cinema em Biarritz (França) na semana em que a sala passou a exibir A cadela, em 1931. Essa “propaganda muito inteligente” foi o que “salvou o filme” de Jean Renoir, segundo o cineasta contou aos colegas François Truffaut e Jacques Rivette, em entrevista para a revista Cahiers du Cinéma.
A estreia do longa, na cidade de Nancy, havia sido um fracasso. A estratégia da antipropaganda, traçada pelo proprietário da sala de Biarritz, que era também amigo de Renoir, foi plenamente bem-sucedida. “Todo mundo foi ver o filme. Pela primeira vez na história do cinema dele, um título ficou em cartaz não quatro dias, mas três semanas, me parece. Essa história chegou até Paris”, relatou Renoir. Um exibidor parisiense então se animou a exibir A cadela, e o filme não somente foi salvo do esquecimento em 1931 como sobreviveu intacto até os dias de hoje.
Nesta sexta-feira (24), a sala Humberto Mauro, no Palácio das Artes, promove sessão gratuita de A cadela, às 19h30, como parte do ciclo Cinema e Psicanálise, realizado em parceria com o braço mineiro da Escola Brasileira de Psicanálise.
A história do longa, baseado no livro de Georges de la Fouchardière, é sobre um empregado de escritório que tem o hobby de pintar e vive um casamento amargo com uma mulher que sente falta do primeiro marido e demonstra mais desprezo do que amor pelo atual. Quando conhece Lulu, Legrand se apaixona e passa a viver o que considera um grande amor. Lulu, por sua vez, obedece aos planos de seu cafetão para transformar a ingenuidade de Legrand em vantagem financeira.
A crítica norte-americana enxergou em A cadela a história de uma degradação, principalmente porque (desculpe o spoiler!) o protagonista se torna um assassino. Mais familiarizados com a obra de Renoir e seu amor pela complexidade do comportamento e da alma humanos, além de sua compaixão sem reservas pelos personagens que não camuflam suas imperfeições, os franceses não resumem o longa exatamente assim. “Nada é absoluto. Não existe o bom absoluto, nem o mau absoluto. Os bons são frequentemente muito malvados, e os malvados são muito bons. Acho que (o escritor russo) Gorki (1868-1936) diz algo assim. Há uma frase no meu filme Bas-fonds também sobre isso. É que os assassinos não são assassinos todos os dias; há momentos em que eles não são assassinos”, observou o próprio Renoir.
INQUIETAÇÕES
O cineasta cita que estão presentes também em A cadela as três inquietações que perpassam boa parte de sua obra: “Como eu sou da porta para fora? Como as pessoas me veem? E como isso me afeta?”. Para interpretar personagens com dilemas interiores muitas vezes insolúveis, Renoir precisava de grandes atores. E eram eles que mantinham vivo seu desejo de filmar.
“Quis fazer esse filme pelas mesmas razões que me impulsionaram a fazer muitos outros filmes. Foi por causa da minha admiração por Michel Simon. Achava que Michel Simon interpretando o personagem de Legrand seria prodigioso. Sonhava em ver Michel Simon na tela com certas expressões, com a boca contraída de determinada maneira. Sonhava em vê-lo com essa espécie de máscara que é tão apaixonante como uma máscara da tragédia antiga. E pude realizar meu sonho”, afirmou na conversa com Truffaut e Rivette, publicada no volume JeanRenoir – Entretiens et propos (Petite Bibliotèque des Cahiers du Cinéma), ao lado das mais relevantes entrevistas do cineasta para a Cahiers du Cinéma.
Renoir não escondia que a arte da interpretação tinha reflexo direto em sua arte como autor de cinema. “O que acontece com os grandes atores e, consequentemente, com Michel Simon é que os grandes atores nos desvelam, eles colocam em dia sonhos que tivemos, mas que não formulamos. Na verdade, é o eterno mistério da criação. Chega um momento em que não somos mais responsáveis por nossas criações, um momento no qual elas nos escapam. E o grande ator é um grande ator na proporção em que ele nos escapa e, ao nos escapar, corresponde ao sonho que tivemos antes e que ele nos faz redescobrir.”
Essas convicções de Renoir se traduzem também em seu modo de filmar, com planos longos e múltiplas câmeras no set “para não cortar a inspiração do ator”, a serviço do qual ele se coloca. Realizado na passagem do cinema silencioso para o sonoro, A cadela traz essas características e antecipa o que seriam marcas da obra sonora de Renoir, aperfeiçoadas poucos anos mais tarde nos magníficos A grande ilusão (1937) e A regra do jogo (1939).
O cuidado do diretor com os personagens ia ao limite da obsessão, Um exemplo disso está na cena em que Maurice Legrand (Michel Simon) conhece Lulu (Janie Marèze). Filmada com grande desafio técnico sob uma chuva artificial – “Parece-me que um encontro como esse só poderia ocorrer sob a chuva”, disse Renoir –, a sequência inclui uma cortina que se move no interior da loja, enquanto o casal está abrigado do lado de fora. “Fico tão feliz. Quando revejo o filme, noto que ninguém percebe isso, a não ser eu mesmo”, admitiu Renoir.
O apego por esse tipo de detalhe está longe de ser um capricho. Pelo contrário, denota o esforço de Renoir em se comunicar com seu público. “Tenho uma mania, quando filmo, que é tentar fazer o espectador pensar que os personagens principais que mostro na tela não estão completamente sós na vida, que há outras pessoas que vivem, que amam, que sofrem, que ralam e têm alegrias e tristezas.”
A comunicação, no entanto, nem sempre foi imediata. “Sempre atravessei períodos difíceis na vida. Isso nunca mudou pela simples razão que... Não, afinal, não é uma razão tão simples assim. Acho que a verdadeira razão é que os filmes que faço nunca são filmados no momento exato em que deveriam ser. Há sempre um pouco de defasagem entre meu trabalho e a opinião pública. As pessoas constatam isso e dizem: ‘Não se deve encomendar mais filmes a esse sujeito, porque ele vai fazer algo muito bom, mas que será difícil lançar. Esse foi o caso de A cadela, que teve dificuldades para ser lançado e alcançou o sucesso somente depois de muitos meses de problemas, de negociações, de lutas. Isso não incentivava os produtores a me encomendar outros filmes.”
INGENUIDADE
Embora tenha sofrido as dificuldades impostas pelo modo de produção cinematográfica de seu tempo, do qual foi também um analista agudo e um crítico inteligente, Renoir não deixava essas questões enevoarem seu compromisso com a própria arte. “A ingenuidade é absolutamente necessária à criação. As pessoas que fazem amor dizendo ‘vamos fazer um bebê magnífico’, bem, elas não farão um bebê magnífico, provavelmente não farão bebê nenhum nessa noite... O bebê magnífico vem por acaso, num dia em que demos risada: houve um piquenique, nós nos divertimos no parque, rolamos na grama e... vem um bebê magnífico!”
A sessão desta sexta-feira de A cadela em Belo Horizonte será seguida de debate com a psicanalista e professora de psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Márcia Rosa. Sobretudo, vá ver esse filme, porque é Jean Renoir!
A cadela
Exibição do longa de Jean Renoir, seguida de comentário e debate. Sexta-feira (24), às 19h30, no Cine Humberto Mauro (Av. Afonso Pena, 1.537). Senhas são distribuídas antes da sessão, até a lotação da sala. Mais informações: (31) 3236-7400.