DEBATE

BRASÍLIA – A proposta que altera a Constituição (PEC) e transfere áreas de marinha para ocupantes particulares, estados e municípios ganhou as redes sociais após surfistas, influencers e ativistas gravarem vídeos para se posicionar de forma contrária e pedir aos internautas para também rejeitarem o texto. Dizem que, caso seja aprovado, significará a privatização do litoral brasileiro.

No Congresso Nacional, a ideia é defendida por parlamentares de direita. Eles dizem que ela vai fomentar a economia nacional, especialmente o turismo. O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), relator da PEC, tem feito de tudo para acelerar a tramitação do texto, uma bandeira da sua família, que defende o afrouxamento das leis ambientais para aumentar a exploração da costa brasileira. 

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) declarou algumas vezes durante seu mandato que deseja ver Angra dos Reis (RJ) transformada em uma “Cancún brasileira”. Disse que na região, como em outras consideradas sensíveis ambientalmente, deveria haver permissão para resorts. Ele, os filhos e políticos aliados inclusive manifestaram o desejo de permitir navios de cruzeiro até em Fernando de Noronha.

De acordo com um levantamento obtido e compartilhado por Flávio Bolsonaro, o projeto pode afetar ao menos 521 mil propriedades caso avance no Senado Federal e seja sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva

(PT).

Especialistas falam riscos ambientais, sociais e patrimoniais

A PEC tem mobilizado a opinião pública, inclusive com discussão pública entre a atriz Luana Piovani – contrária à proposta – e o jogador Neymar Júnior – favorável, já anunciou parceria com uma construtora para um condomínio na beira do mar. Provocado por Luana, sua ex, o surfista Pedro Scooby, amigo de Neymar, também entrou no debate e disse ser contra a ideia.

Especialistas falam em riscos ambientais, sociais e patrimoniais. Dizem que a mudança na Constituição pode se chocar com princípios de soberania nacional, justiça social e pontos importantes da preservação do meio ambiente. 

Nota técnica emitida pelo Grupo de Trabalho para Uso e Conservação Marinha (GT-Mar), afirmou que a aprovação da PEC representa grave ameaça ambiental às praias, ilhas, margens de rios, lagoas e mangues, além de ser um aval para expulsão de comunidades tradicionais de seus territórios.

O Observatório do Clima, que reúne diversas entidades em defesa do meio ambiente, disse que as áreas de marinha são fundamentais para preservar as regiões contra enchentes e deslizamentos, por exemplo. “Essas áreas preservam nossa biodiversidade e equilíbrio dos ecossistemas costeiros. Privatização pode trazer danos irreversíveis”, destaca trecho de nota da entidade.

Pesquisadores lembram que o nível do mar vem subindo nos últimos anos. Esse aumento avança exatamente sobre a área de segurança e dos terrenos de marinha. Essas áreas, que normalmente têm manguezais, restingas e falésias, são consideradas áreas de preservação ambiental permanentes. 

Se houver perdas nessas estruturas naturais, haverá perdas de bem-estar humano e perdas econômicas. Citam a tragédia no Rio Grande do Sul, onde as perdas econômicas atingem toda a população.  

Confira abaixo os principais pontos da “PEC da privatização das praias”:

Está em debate a PEC 3/2022. Ela foi aprovada na Câmara em fevereiro de 2022, após 10 anos de sua apresentação, e enviada ao Senado.

A matéria transfere os terrenos de marinha para ocupantes particulares, estados e municípios.

Na prática, empresas e outros ocupantes particulares poderão comprar a posse desses territórios. Para que isso ocorra, será necessário uma inscrição junto ao órgão de gestão do patrimônio da União.

Pela Constituição, atualmente essas áreas pertencem à União e, apesar do nome, não são propriedades da Marinha do Brasil.

Pela Constituição, o acesso a esses locais é público. Esses espaços podem ser usados livremente pela população.
De acordo com a legislação, o acesso às praias é liberado mesmo quando os territórios estão próximos a propriedades privadas, como o caso de resorts e hotéis no litoral.

Os terrenos de marinha são áreas à beira-mar na faixa de terra que começam 33 metros depois do ponto mais alto que a maré atinge.

No momento, o texto está em análise na CCJ do Senado, onde tem Flávio Bolsonaro (PL-RJ) como relator. Foi ele quem colocou o tema de volta à discussão, por decisão tomada por ele na semana passada.

Em seu parecer, Flávio Bolsonaro disse que o objetivo da PEC “é extinguir os terrenos de marinha e estabelecer um regime patrimonial específico para esses bens”.

Segundo o relator, os terrenos de marinha “causam prejuízos aos cidadãos e aos municípios”. “O cidadão tem que pagar tributação exagerada sobre os imóveis em que vivem: pagam foro, taxa de ocupação e Imposto Predial Territorial Urbano (IPTU)”, defendeu.

“Já os municípios, sofrem restrições ao desenvolvimento de políticas públicas quanto ao planejamento territorial urbano em razão das restrições de uso dos bens sob domínio da União”, completou o senador.

Entenda o que é terreno de marinha:

Os terrenos de marinha são terras da União no litoral, entre a linha imaginária da média das marés registradas em 1831 e 33 metros para o continente.

É uma faixa costeira considerada estratégica pelo governo. Também são consideradas nessa condição as margens de rios e lagoas que sofrem influência das marés.

Apesar do nome, terrenos de marinha nada têm a ver com a força armada Marinha. São determinados por estudos técnicos, com base em plantas, mapas e documentos históricos.

O conceito foi instituído ainda no tempo do Império, com a vinda de Dom João VI e da família real. As terras eram destinadas à instalação de fortificações de defesa contra invasões marítimas.

A medida de 15 braças, equivalente a 33m, era considerada a largura suficiente para permitir o livre deslocamento de um pelotão militar na orla e assegurar o livre trânsito para qualquer incidente do serviço do rei e defesa do país.

Também era um espaço estratégico para o serviço de pesca, já que era uma faixa onde os pescadores puxavam as redes. Hoje, a principal legislação sobre o assunto é o Decreto-lei 9.760, de 1946.

A área de segurança nos terrenos de marinha em outros países costuma ser maior que a adotada no Brasil. Em Portugal, por exemplo, são 50 metros; na Suécia, 100 a 300m; no Uruguai, 150 a 250m; na Argentina, 150m.

Aliás, enquanto a PEC avança no Senado brasileiro, outros países estão recomprando as áreas de praia que haviam sido privatizadas tempos atrás.