SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Prestes a tomar posse como deputado federal, Guilherme Boulos (PSOL) chega ao Congresso disposto a reforçar a base do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), combater o legado de Jair Bolsonaro (PL) e encampar bandeiras de esquerda que fizeram mais de 1 milhão de eleitores votarem nele.

"Vai ser um governo extremamente desafiador", diz em entrevista à reportagem, reiterando sua confiança na capacidade de Lula para enfrentar obstáculos como a renitência do bolsonarismo na sociedade, as ameaças golpistas e a frágil sustentação do governo no Legislativo.

A proximidade com o petista, no entanto, não impede Boulos de criticar a fala do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, de que os acampamentos contra o resultado das eleições eram manifestações democráticas e que tinha amigos e parentes seus envolvidos nos atos.

Ao mesmo tempo, minimiza os elos da ministra do Turismo, Daniela Carneiro, com milicianos. O futuro parlamentar afirma não haver "provas robustas" de associação dela com criminosos, ao contrário do que, segundo ele, ocorria com Bolsonaro e seu entorno. "São casos bem diferentes."

Pré-candidato a prefeito de São Paulo em 2024, o líder de movimentos de moradia diz querer avançar no entendimento com o PT sobre o compromisso de apoio firmado por Lula. O psolista chama o prefeito Ricardo Nunes (MDB), seu virtual adversário, de "síndico de condomínio".

MANDATO DE DEPUTADO

Boulos se apresenta como o deputado federal mais votado da história da esquerda brasileira e diz ter objetivos claros: "Meu papel no Congresso é ajudar o Lula a reconstruir o Brasil e buscar colocar pautas de esquerda e populares na agenda política do Legislativo". Uma delas será a taxação mais elevada sobre altas rendas, que deve entrar no debate da reforma tributária.

"E vou fazer o enfrentamento sem trégua ao golpismo. Quem acreditava que o bolsonarismo acabaria com a derrota de Bolsonaro viu no dia 8 que isso não será possível", segue.

Boulos possui dois projetos de lei em mente: um para estimular as chamadas "cozinhas solidárias", ação já feita pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) e que seria replicada como medida emergencial contra a fome, e outro criando uma política para a população de rua, com acesso a moradia.

CENÁRIO PARA LULA

"Acho que vai ser um governo extremamente desafiador", resume, culpando "o tamanho do estrago feito pelo bolsonarismo" nas políticas públicas, algo que viu em detalhes ao integrar a equipe de transição, na área de cidades.

"O desafio do governo Lula é de reconstrução do país, e isso não é fácil. [Há] circunstâncias difíceis: o bolsonarismo ainda presente na sociedade, com uma parte radicalizada no golpismo, e uma correlação de forças no Congresso Nacional que, embora vá ter maioria de apoio ao Lula, não é propriamente uma maioria em relação ao programa que foi eleito."

 
O psolista defende que Lula dialogue com o centrão, desde que acordos em bases diferentes das usadas por Bolsonaro. "O que não pode é terceirizar o governo, com orçamento secreto, e isso o Lula já demarcou. Agora, vai ter uma disputa. É natural que num governo de composição tão ampla haja posições divergentes."

MOBILIZAÇÃO POPULAR

Político forjado em movimentos sociais, Boulos enxerga o apoio popular, "ainda mais em um momento tão adverso", como ingrediente fundamental para o governo. "Tenho confiança na capacidade do Lula para enfrentar os obstáculos, mas isso também vai ter que passar pela mobilização da sociedade", diz.
Para ele, disso depende a construção da governabilidade. "Não adianta achar que apenas ali da praça dos Três Poderes vão vir todas as soluções. E é papel do governo chamar a sociedade a essa participação."

PACIFICAÇÃO X ESQUECIMENTO

"Precisamos dizer com todas as letras: dia 8 foi uma tentativa de golpe de Estado realizada pelos bolsonaristas", afirma Boulos.

Para ele, a "punição exemplar" dos responsáveis é uma forma de "não naturalizar e não permitir que a oposição seja feita nesses termos violentos e golpistas". Por isso, "não pode haver nenhum tipo de anistia para quem financia e promove o golpismo".

 
Sem consequências, "isso pode acontecer novamente e esse pode virar o padrão de oposição. Essa não é uma questão de vingança, mas de definição de linhas demarcatórias. Pacificação é uma coisa, esquecimento é outra."

FATOR MÚCIO

Questionado sobre o papel do ministro da Defesa na prevenção dos atos do dia 8, Boulos diz que "o maior responsável pela leniência foi o Governo do Distrito Federal, com a Polícia Militar praticamente escoltando os golpistas para depredarem os palácios".

"Agora, eu acho que o ministro Múcio deveria escolher melhor os seus amigos. Se ele diz que tem amigo em acampamento golpista, isso não é normal. Aqueles acampamentos eram qualquer coisa menos democráticos, porque defendiam golpe de Estado", responde.

QUESTÃO DANIELA

Indagado sobre elos da ministra do Turismo, filiada à União Brasil, com milicianos em sua base eleitoral, Belford Roxo (RJ), conforme revelou a Folha, Boulos repete o discurso de membros do governo e aliados de Lula.

"Não conheço com detalhe as acusações, se há algum processo judicial. Sou a favor do amplo direito de defesa, mas, se houver qualquer comprovação da ligação da ministra com a milícia, eu serei um dos que defenderão a saída dela [do cargo]."

Ele nega contradição entre sua postura no governo Bolsonaro, quando usava o termo miliciano para se referir ao então presidente, e o discurso de agora. "Para mim, pau que bate em Chico bate em Francisco. [Mas] são casos bem diferentes."

Diz que sobre o governante anterior pesavam "conexões políticas, comprovações fartas e provas robustas", envolvendo figuras como Adriano da Nóbrega e Fabrício Queiroz.

 O grupo político de Daniela mantém elos com a família de um ex-PM condenado a 26 anos por homicídio e associação criminosa. Ela também recebeu apoio de outros acusados de liderar grupos armados.

"Não cabe a mim defendê-la, não sou advogado dela. Se, de fato, houver uma ligação comprovada dela com a milícia, ela tem que deixar o governo e responder por isso judicialmente", completa, antes de mudar de assunto. "Não sou conselheiro [de Lula] ou comentarista político das decisões de governo."

CANDIDATURA A PREFEITO EM 2024

"Quem votou em mim para deputado federal não só sabia [do projeto da candidatura] como espera que eu faça isso, porque eu nunca escondi. Hipocrisia seria eu ficar fingindo que não serei candidato. Isso, sim, seria desonesto com os meus eleitores", diz.
Depois de chegar ao segundo turno da eleição paulistana em 2020, Boulos diz que confia no compromisso de Lula de que o PT não lançará nome na disputa e apoiará o aliado. Ele diz que vai "dialogar amplamente" com o partido para desarmar resistências e "construir o processo de forma conjunta e natural".

Para Boulos, as circunstâncias desta vez serão "muito mais favoráveis" a ele, com o resultado positivo do governo Lula -que ele espera estar evidenciado até a campanha. Além disso, acredita que se tornou mais conhecido e vai "ganhar uma experiência política maior" com o mandato federal.

NUNES E TARIFA ZERO

"Ricardo Nunes administra São Paulo como se fosse o síndico de um condomínio. Não é um líder político, não tem visão de cidade, a cidade está sem rumo", afirma Boulos, falando ainda em "incompetência e falta de vontade política".

O psolista diz estranhar que a tarifa zero no transporte público, uma bandeira sua e de seu partido, seja mencionada por Nunes e pelo presidente da Câmara Municipal, Milton Leite (União Brasil).

"Vejo com muita estranheza quando figuras ligadas à histórica máfia do transporte passam a defender isso de forma oportunista e casuística. Essa máfia é um conluio de empresas que seguidamente ganham licitações e que não têm nenhuma transparência."

Segundo ele, implementar a gratuidade sem planejamento, de modo eleitoreiro, pode virar "um tiro no pé" e acabar desmoralizando a iniciativa.

"Milton Leite deu uma entrevista [à revista Veja São Paulo] dizendo que 'ou implementamos a tarifa zero ou o Boulos ganha a eleição'. Então o motivo é evitar que eu ganhe?", ironiza, aos risos. "Fico satisfeito de, mesmo sem ser candidato ainda oficialmente, eu estar melhorando a vida dos paulistanos."

RAIO-X

GUILHERME BOULOS, 40

É formado em filosofia e mestre em psiquiatria pela USP. Coordenador do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), foi candidato a presidente em 2018 pelo PSOL. Chegou ao segundo turno da eleição para a Prefeitura de São Paulo e foi derrotado pelo candidato à reeleição, Bruno Covas (PSDB). Foi o deputado federal mais votado em São Paulo em 2022, com pouco mais de 1 milhão de votos