O Brasil é conhecido como o país das novelas. Mas o fato é que, cada vez mais, o país expande suas cifras de produção e consumo de séries. Os programas de fomento ao audiovisual e a chamada Lei da TV Paga (12.485/11; que obriga a TV por assinatura a exibir, semanalmente, três horas e meia de conteúdo nacional) ajudaram a fomentar esse mercado. E o interesse pela produção de séries vai além dos canais de TV. Serviços de streaming, como a Netflix, aderiram à tendência.


A primeira série original brasileira da gigante do streaming foi 3%, lançada em 2016 e que já emplacou duas outras temporadas. De lá para cá, o catálogo da plataforma ficou recheado de produções tupiniquins. O mecanismo, Coisa mais linda, Samantha e, em breve, Irmandade e Boca a boca. A mais recente, disponibilizada na semana passada, é O escolhido, suspense sobrenatural ambientado no Pantanal e estrelado por Paloma Bernardi.

"A adaptação da série mexicana Niño Santo feita pelos roteiristas Carolina Munhóz e Raphael Draccon fez com que O escolhido incorporou elementos bem brasileiros não só aos cenários, como também à trama. “Porém, os inúmeros temas abordados na série são de interesse universal (ciência versus fé, imortalidade, fidelidade). Então, acredito no potencial internacional dessa série, por ser de um gênero popular, num cenário completamente original (Pantanal) e com temas universais", afirma o diretor da produção, Michel Tikhomiroff.


Sócio e diretor artístico da Mixer Films, ele diz que a empresa investe no formato de séries desde 2006, quando produziu Mothern (que teve três temporadas no GNT). "Com a chegada de plataformas de streaming como a Netflix, que tem investido no Brasil de forma poderosa, somando-se a players como a HBO, que já vinha apostando nesse mercado, e acanais como a Globo, que se abriu para trabalhar com algumas produtoras independentes, investindo também em séries, estamos definitivamente caminhando para a consolidação dessa indústria", avalia.


No entanto, as incertezas com relação ao futuro do incentivo à produção audiovisual levantadas pelas políticas para a área do novo governo federal, podem representar um revés para esse cenário. Em março, o Tribunal de Contas da União (TCU) determinou que a Agência Nacional do Cinema (Ancine) interrompesse os repasses de recursos públicos para o setor audiovisual, até que a agência tenha "condições técnicas" para analisar as prestações de contas dos projetos.


No começo de junho, os diretores da Agência Christian de Castro, Débora Ivanov e Alex Muniz receberam representantes de entidades e associações do audiovisual para uma conversa sobre o andamento do plano de ação com o TCU. Castro abriu o encontro afirmando que a Ancine não parou e que segue assinando contratos, liberando recursos, fazendo análises. O diretor falou também sobre um plano de ação apresentado ao TCU e sobre as medidas que estão sendo tomadas para alinhar a capacidade operacional da Agência ao número de projetos em prestação de contas e à superação do passivo.


"Há produções que são feitas com verba incentivada e outras que não são (como O escolhido). Essa combinação saudável de incentivos à indústria fez com que o setor audiovisual gerasse emprego e movimentasse a economia, sendo hoje responsável por 2% do PIB. Ou seja, investir em cultura é um bom negócio. Estou apreensivo com as mudanças que vêm ocorrendo, mas sigo otimista quanto ao futuro do audiovisual brasileiro,  acreditando que o bom senso prevalecerá", diz Tikhomiroff.


DÚVIDA

Mas nem todo mundo está tão confiante. Tiago Rezende, sócio-fundador da Verte Filmes, produtora de Porto Alegre, onde trabalha como roteirista, produtor-executivo e diretor, diz que o calendário já está atrasado e que o clima é de dúvida. "Essas incertezas prejudicam demais. É um setor que está crescendo muito, estruturando a vida de muitas pessoas, não só no sentido de gerar renda e trabalho, como de fazer nossa identidade aparecer. Estamos contando as nossas próprias histórias para nós mesmos e ainda exportando", diz.


O projeto mais recente da Verte é a série O complexo, um drama policial e de tribunal cuja primeira temporada acaba de ser gravada, contando com recursos do pelo Fundo Setorial Audiovisual (FSA), gerido pela Ancine. No entanto, os demais projetos da produtora estão atrasados, em razão da paralisação temporária das atividades da Agência. "As linhas de investimento de 2018 estão bem mais demoradas do que deveriam. Já era difícil para médias e pequenas produtoras bancar. Imagina como vai ser se esses investimentos diminuírem ou forem suspensos.".


A Verte Filmes já produziu séries como Necrópolis e Alce e Alice, disponíveis no catálogo da Netflix. Na opinião de Rezende, o brasileiro se acostumou ao estilo norte-americano de fazer séries, mas, aos poucos, vai se rendendo a um estilo mais brasileiro. "Durante muito tempo, nosso parâmetro de série foi a TV Globo, e eram muito longas, um outro formato. A série brasileira independente é relativamente nova e à medida que se produz mais e em vários gêneros, o público vai ficando mais aberto. Por isso é essencial que essa produção não pare", afirma.


O complexo, que tem lançamento agendado para março de 2020 no canal CineBrasilTV, teve coprodução da Casa de Cinema de Porto Alegre e realização da Remo Assessoria. Produtora executiva e sócia-diretora da Remo, Clarissa Millford é outra que exalta o bom momento do gênero no país exemplifica com produções de sucesso que extrapolaram as fronteiras nacionais, como O mecanismo, O negócio e 1 contra todos. "Saímos dessa questão de passar em um só canal para alcançar um outro nível de público, sobretudo com o streaming", pontua.


A produtora percebe uma tendência de as séries abordarem assuntos em voga no país. "Temas bem contemporâneos, como racismo, feminismo, inclusão e a política estão presentes. A arte também tem esse papel. O próprio O complexo traz isso. O processo de desenvolvimento da série ocorreu durante o período eleitoral de 2018 e isso, certamente, influenciou na feitura do roteiro. De alguma maneira, está representado nos diálogos", diz ela, que afirma estar esperançosa, apesar do contexto. "Essas incertezas exigem que busquemos soluções alternativas e, sobretudo, criativas. É no momento de crise que encontramos a melhor forma de realizar e dar a volta por cima."


ANIMAÇÃO

O bom momento inclui também o setor de animação. Na última sexta (5), estreou WeeBoom, segunda coprodução 100% brasileira do Boomerang, que exibe também Zuzubalândia, adaptação do livro homônimo de Mariana Caltabiano. A série conta a história de dois melhores amigos que percorrem o mundo em busca de criaturas mágicas e maluquinhas. Jonas Brandão, um dos diretores e criadores da série, conta que a gestação do projeto começou em 2011 e já vislumbrava um produto que pudesse atingir não somente o público brasileiro, como também o estrangeiro.


"WeeBoom já nasceu bilíngue e os episódios estão sendo exibidos em todos os países da América Latina com versões em português e em espanhol disponíveis. Esse é o primeiro passo. O segundo é tentar outros lugares, como Europa e Estados Unidos. Na nossa história, os personagens viajam pelo mundo. Então queremos que a série também viaje pelo mundo. Potencial para isso ela tem", avalia.


Brandão, que é um dos proprietários do Split Studio, produtora de animação e games, aponta que a animação brasileira venha ganhando espaço e prestígio internacional, não só com séries (Peixonauta e O show da Luna), como também com longas-metragens (O menino e o mundo, Uma história de amor e fúria e Tito e os pássaros). No entanto, ele está apreensivo em relação ao futuro, lembrando que o boom da animação é relativamente novo e foi impulsionado não só por um diálogo com a iniciativa privada, como também pelos programas de investimento do governo federal.


"E ainda teve a questão da lei das cotas, que estimulou ainda mais. O mercado floresceu, novas produtoras de animação surgiram, inclusive, fora do eixo Rio-São Paulo. Estamos num momento um pouco estranho e não só no audiovisual. Sempre que há troca de governo, ocorrem mudanças. É tempo de cautela e não sabemos ainda como vai ser", diz. WeeBoom conta com recursos da Ancine e que há outros projetos do Split Studio que foram contemplados por editais. "Não sabemos se é interesse do novo presidente continuar fomentando a cultura. Por isso há uma certa inquietação."


Mesmo com as incertezas e possíveis alterações nos programas de fomento da produção audiovisual, Adriana Alcântara, diretora sênior de conteúdo e produção nacional dos canais infantis da Turner (Cartoon Network, Boomerang e Tooncast), diz que o brasileiro é muito flexível e criativo e acaba encontrando saídas para continuar produzindo. "Temos um mercado mais desenvolvido e maduro hoje em dia. Há uma série de soluções alternativas para se otimizar a produção. Ajusta ali, corta daqui. Se faltarem recursos do governo, é possível encontrar novas maneiras", defende.


Na opinião da executiva, a produção brasileira está se consolidando cada vez mais. "O próprio WeeBoom tem um sabor local, com personagens bem brasileiros na forma de agir, mas sem ficar excluído do mercado internacional. A série consegue ser muito bem aceita lá fora. Seria muito difícil sustentar uma animação sem fazer com que esse investimento passasse em outros países da América Latina. Até o entendimento do negócio mudou. Pode ser local, mas sem ser bairrista", observa.