Em todo Brasil, 6 mil menores brasileiros sonham em ganhar uma família. Em Minas, são 636. Do outro lado, existem seis vezes mais pessoas interessadas na adoção, mas a maioria não encontra o perfil que deseja e só faz prolongar a espera.


No princípio, o desejo era adotar um recém-nascido, independentemente da cor da pele ou do sexo. Mas a vida surpreende, os dias ensinam e as expectativas foram atropeladas sem deixar qualquer frustração ao casal morador de Contagem, na Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH). Hoje, Gilmar Pereira de Carvalho, de 58 anos, e Luciana de Freitas Barbosa Carvalho, de 38, estão felizes da vida como pais das irmãs biológicas Ana Luísa Barbosa Carvalho, de 13, e Thayná Barbosa Carvalho, de 8, que vieram ao mundo em Patrocínio, no Alto Paranaíba, moraram em abrigo, mas encontraram no apartamento do Bairro Eldorado um lar com aconchego, carinho e as “palavras certas, no momento certo, para educar”, conforme ressalta a mãe.

Gilmar e Luciana se conheceram em Portugal há 10 anos e se casaram há quatro no Brasil. Na época, Luciana falou do sonho de ter filhos e, mesmo sem qualquer impedimento para gerar uma criança, considerava a adoção muito bem-vinda. O marido, aposentado, já tinha filhos e um netinho, e foi o menino quem indicou o caminho a seguir: “Quando o vi correndo dentro de casa, durante alguns dias em que ficou aqui, senti que não dava conta de um bebê de novo”, revela Gilmar, bem-humorado, com aval e sorriso da mulher. Assim, os dois se candidataram à doação que foge ao padrão procurado pela maioria dos pretendentes – crianças com até 3 anos de idade.

Em Minas, por exemplo, 53,7% dos interessados em adotar querem crianças com até três anos (veja quadro), de acordo com dados do Cadastro Nacional de Adoção/Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG). Na contramão dessa realidade, o casal de Contagem recebeu de coração e braços abertos as meninas Ana Luísa e Thayná, então com 10 e 5 anos. A irmã do meio, Brenda, de 9, foi adotada por uma família de Matozinhos, na RMBH, e as três se encontram um fim de semana por mês, informam os pais.

A história da família Carvalho serve de exemplo para outros brasileiros ainda reticentes quanto à adoção, principalmente a tardia (crianças maiores de 3 anos de idade), e fixos num perfil específico de criança. Segundo o CNJ, há, no Brasil, seis vezes mais pessoas habilitadas ao processo do que crianças e adolescentes em condições de serem adotados – mesmo assim, são aproximadamente 6 mil menores em abrigos esperando uma família. Nesta situação, está o jovem R., que completará 18 anos em junho e há mais de uma década espera pela adoção. As palavras transmitem emoção e clareza. “Toda criança ou adolescente de um abrigo alimenta a vontade de ter uma família, receber carinho dos pais, mesmo não sendo os de sangue, e morar numa casa tranquila. Comigo não é diferente, mas, quer saber a verdade? Não tenho mais esperanças”, diz o jovem, abrigado na Unidade de Acolhimento Institucional Casa dos Anjos, no Bairro Santa Mônica, na Região de Venda Nova.

O motivo para a discrepância entre os dados, de acordo com as autoridades, é que os adotantes procuram crianças bem pequenas ou recém-nascidas, e boa parte dos menores disponíveis para adoção – em Minas eles somam 636 – se encontra no grupo das chamadas adoções necessárias, ou seja, são maiores de 3 anos, têm necessidades especiais ou são grupos de irmãos, que a Justiça procura não separar.

CAMINHADA Para tentar mudar comportamentos e estimular os mineiros, mostrando à sociedade que “famílias adotivas são como todas as outras e o amor entre pais e filhos adotivos vai além dos laços consanguíneos”, será realizada hoje, às 9h, com concentração na Praça da Liberdade, na Região Centro-Sul da capital, a 1ª Caminhada da Adoção, inciativa do Grupo de Apoio à Adoção de Belo Horizonte (GAA/BH) e o Grupo de Apoio à Adoção de Santa Luzia (Gada), com suporte da Câmara de Dirigentes Lojistas de Belo Horizonte (CDL/BH), da Fundação CDL Pró-Criança e do TJMG.

A Caminhada da Adoção faz parte das ações do TJMG, por meio da Coordenadoria da Infância e da Juventude (Coinj), para promover a adoção de crianças a partir de 3 anos, grupos de irmãos e crianças portadoras de necessidades especiais, durante a Semana Nacional da Adoção. Além da atividade, será realizado, na terça-feira, o Seminário da Adoção Tardia, quando será lançado o Projeto Apadrinhar, do TJMG e coordenado pela desembargadora Valéria Rodrigues Queiróz, superintendente da Coordenadoria da Infância e da Juventude do TJMG-Coinj. 

“Adotar uma criança é um ato de amor, não se trata de favor, muito menos de caridade. Deve prevaler o desejo de querer ter um filho”, diz a diretora do GAA/BH (associação existente há 10 anos e sem fins lucrativos), advogada Larissa Jardim. A desembargadora Valéria Rodrigues Queiróz, por sua vez, lamenta: “A procura por bebês para adoção ainda é muito maior, infelizmente. Segundo dados do CNJ, 92,7% dos pretendentes à adoção, no Brasil, desejam crianças com idade entre zero e 3 anos. Contudo, apenas 8,8% das crianças aptas à adoção têm essa idade”.

AMOR COMPLETO A vida de Gilmar e Luciana mudou completamente em outubro de 2016, quando as irmãs Ana Luísa e Thayná foram viver em sua companhia e começaram a chamá-los de pai e mãe. “Até então, éramos nós dois e o cachorrinho Toby. Um silêncio só, pois até ele é bem quietinho”, brinca Luciana olhando para o mascote da família, que foi prontamente “adotado” pelas meninas. O processo de habilitação, na Justiça, teve o suporte do GAA/BH, e momentos de emoção superlativa. Ao lado, Gilmar acrescenta que a chegada das duas foi “uma revolução completa para melhor”.

“Quando informada sobre as meninas, que estavam num abrigo em Patrocínio, meu coração disparou. E pensei: ‘encontrei minhas filhas. Tenho certeza’”, conta Luciana, embora nem tivesse visto foto das garotas. No primeiro encontro, num fim de semana, “tivemos certeza do que queríamos”. Ouvindo a conversa, mas prestando atenção também na tevê, Ana Luísa lembra que chorou muito no início e depois foi se acostumando. “Fique feliz”, diz a adolescente, que pretende ser advogada, tem aulas particulares e acompanhamento de uma psicóloga. 

Thayná também ouve a conversa, na sala de casa, e, com jeitinho meigo, conta que ter um lar foi “muito legal”. Curiosamente, ela lembra os traços de Luciana, que se orgulha da comparação física e conta que Ana Luísa se parece muito com a família do marido. Luciana vai até a estante e volta com duas cartas recebidas no Dia das Mães. Na primeira, Thayná escreveu: “Você é minha vida. Mãe linda e guerreira, forte e apaixonada. Mãe, eu adoro sua comida”. Na outra, foi a vez de Ana Luísa: “Você é a melhor mãe. Sem você, não sei o que seria de mim”.

‘Não tenho mais esperança’

R., de 17 anos, 
acolhido na Unidade de Acolhimento Institucional Casa dos Anjos/Grupo de Desenvolvimento Comunitário (Gdecom), em BH


“Vou completar 18 anos em 19 de junho. Até lá, poderei ficar no abrigo. Depois, não sei que rumo vou tomar. Desde que me entendo por gente, minha vida tem se dividido entre uma família aos pedaços, com muitos irmãos, e o acolhimento nos abrigos, de onde não tenho o que reclamar. Estudo, estou no primeiro ano do ensino médio e quero ser advogado ou médico, mas a angústia de não ter uma família me dói. Toda criança ou adolescente que mora em abrigo alimenta a vontade de ter uma família, receber carinho dos pais, mesmo não sendo os de sangue, morar numa casa tranquila. Comigo não é diferente, mas, quer saber a verdade? Não tenho mais esperança.

Quando eu era bem criança, minha mãe falava que me levaria ao parque, mas me deixava numa creche ou abrigo, não me lembro muito bem. E não voltava para me buscar. Fui adotado pela primeira vez aos 6 anos, mas infelizmente não deu certo. O casal brigou, se separou e voltei para minha família. O pior é que minha mãe bebia, arrumou um namorado que também bebia, e resultado: um dia, cheguei em casa e eles estavam fazendo amor. Fiquei espantado com o que vi, pois era só um menino, né?, então resolvi fugir. Subi no telhado e fui embora.

Aos 10 anos, retornei à vida no abrigo e só tenho a agradecer. Sinto aquela carência de amor de família, uma tristeza, ansiedade, angústia. Seria bom que toda criança tivesse um pai e uma mãe, mesmo adotados. E não pensem que, por estar maior, pode dar errado. Os de 17 anos ou perto dos 18, como é meu caso, têm mais responsabilidade, sabem o que fazem da vida, têm vontade de amar. Só precisamos mesmo de ajuda. No fundo, no fundo, ainda tenho vontade de ser adotado”



Serviço

>> TERÇA-FEIRA

Seminário de Adoção Tardia, voltado para servidores, grupos de apoio à adoção, gestores de entidades de acolhimento, conselheiros tutelares e pretendentes à adoção da Região Metropolitana de Belo Horizonte (capital e cidades vizinhas
Local: Auditório do Anexo I do TJMG, na Rua Goiás, 229, Centro de Belo Horizonte
Horário: das 8h às 18h
Mais informações: site tjmg.jus.br