SEM DESCANSO

Às 3h50 da manhã, Ana (nome fictício), de 34 anos, sai para trabalhar e garantir sozinha o sustento dos três filhos, de 18, 12 e 9 anos de idade. O trajeto é longo e corta parte de Belo Horizonte, saindo do barracão de três cômodos alugado no Bairro Estrela Dalva, na Região Oeste, até uma padaria familiar no Barro Preto, na Região Centro-Sul da capital mineira.

Esse é apenas o início da jornada dupla, que divide a vida entre os balcões comerciais de segunda a sábado, das 4h30 às 12h30, antes de seguir para casa, onde cumpre um expediente ainda maior e cuida dos filhos e das tarefas domésticas “até dormir”. Ana faz parte dos 32% dos brasileiros que trabalham mais de 44 horas semanais formalmente, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), na chamada escala 6x1.

Minas Gerais está entre os 10 piores estados do país em relação ao tempo que as mulheres dedicam trabalhando de forma não remunerada no cuidado doméstico. As mulheres pretas e pardas mineiras são as que mais dedicam tempo à economia do cuidado: em média, 23 horas semanais. As brancas, por sua vez, investem 22 horas semanais para o trabalho doméstico e atenção aos filhos, cônjuges e parentes. O estado supera a média nacional de 22 horas para mulheres pretas e pardas e 20 horas para mulheres brancas. Entre os estados da Região Sudeste, é em Minas onde as mulheres passam mais tempo nessas atividades, aponta o IBGE. 

“Se eu ganhasse na loteria e não tivesse mais dívidas, eu compraria uma casa para os meus filhos terem conforto, porque nesse lugar aqui eles não têm. Depois, iria terminar de estudar, já que só fui até a oitava série, e estudaria ‘advocacia’ para ajudar as mulheres que não têm condições de buscarem seus direitos”, afirma Ana. 

Ela relata ainda que trabalha há mais de 10 anos na escala 6x1 e que já exerceu funções de vendedora, balconista e de gerente de uma loja de roupas. Ana recebe um salário mínimo (R$ 1.518,00) pelas oito horas diárias na padaria, onde faz de tudo um pouco: atende os clientes, prepara lanches e faz a manutenção da limpeza do espaço. Para complementar a renda, vende peças íntimas e perfumes. 

Homens ganham 24,27% a mais que mulheres em Minas, aponta relatório 
“Estou perdendo a criação dos meus filhos. Eles reclamam muito, principalmente a mais nova, que estuda à tarde. Só a vejo na hora de dormir. Meu filho mais velho teve um diagnóstico de Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC) e ansiedade na pandemia, então, ele precisa de cuidados”, relata a atendente. 

Ana não sabe qual foi a última vez que teve lazer sozinha. “Não lembro quando pude me cuidar, me arrumar e ir para um bar, sentar num restaurante com tranquilidade. Hoje eu tenho depressão, estou sempre chorando”, desabafa.

A coordenadora do movimento Vida Além do Trabalho em Minas Gerais (VAT-MG), Bruna Araújo, é mãe de uma menina de 12 anos, mas por ter passado mais de 10 anos inserida na escala de trabalho 6x1, perdeu momentos importantes da criação da filha, que foi cuidada pela avó. “Eu só a vi dançar quadrilha na escola duas vezes. Estou conseguindo conhecer minha filha só agora. Ou abre mão de ser mãe ou abre mão do seu sonho”, diz.


“Estou perdendo a criação dos meus filhos. Eles reclamam muito, principalmente a mais nova"
Ana (nome fictício), de 34 anos, moradora de BH

Ela explica que mães inseridas na escala geralmente ocupam vagas precarizadas. “Não vemos essas mães em trabalhos de lideranças. Elas são faxineiras, atendentes… não existe essa meritocracia, essas mulheres muitas vezes não têm rede de apoio, não têm vaga na creche. Ou trabalha ou morre de fome com o filho”, afirma Araújo. 

Economia do cuidado

A cientista política Bruna Camilo aponta para a necessidade de regulamentação das atividades de cuidado para melhorar a qualidade de vida dessas mães. “Se a gente tem emprego, se a gente estuda, se a gente tem ascensão no mercado de trabalho, por exemplo, é porque alguém cuidou da gente. E geralmente foi uma mulher que cuidou da gente. Isso é a economia do cuidado, porque isso gera renda, lucro, faz a sociedade andar. A sociedade só anda porque alguém cuida”, afirmou a pesquisadora. “Historicamente existe uma divisão sexual do trabalho que mostra que o cuidado não remunerado ou mal pago é das mulheres. Os empregos e os trabalhos voltados para liderança são dos homens”, afirma. 

PEC da escala 6x1

A insatisfação com a escala 6x1 e a defesa de jornadas mais flexíveis ou reduzidas se materializaram na apresentação em fevereiro deste ano de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) na Câmara dos Deputados, de autoria da deputada Erika Hilton (PSOL-SP). O texto propõe alterações na Constituição para limitar a jornada de trabalho a 36 horas semanais e, implicitamente, impactar a escala 6x1 ao defender um modelo com mais dias de descanso. 

Após ser protocolada, a PEC passa pela análise da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJ) para verificar sua admissibilidade constitucional. Se aprovada, segue para uma comissão especial. Posteriormente, o texto precisa ser votado em dois turnos no Plenário da Câmara para ser aprovado antes de seguir para o Senado.