Quando saiu de Peçanha, na região Leste de Minas Gerais, Nilde Enilda Costa Barbosa, hoje com 56 anos, era uma adolescente cheia de planos. Belo Horizonte tinha um ar de modernidade e promessas de oportunidades, como a maior parte das capitais. Ela fez da Vila Cafezal, no aglomerado da Serra, sua morada e de lá nunca saiu. Cerca de 40 anos depois da migração, ela nota que a cidade não foi tão receptiva quanto esperava: “passei por muita coisa”, resume, sem lamentações. Ela, que conhece de perto a fome, agora luta para comer o básico e agradece a “sorte” de conseguir doações. No país onde, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), 14,7 milhões de pessoas deixaram de viver em insegurança alimentar severa entre 2022 e 2023, há muitos locais em que a carência persiste. No aglomerado da Serra e no Cabana do Pai Tomás, em BH, ainda não há motivos para comemoração: de cada dez moradores, quatro não têm acesso a alimentos. Parte deles passa o dia todo sem comer. 

É o que mostra o estudo “Insegurança Alimentar e Nutricional sob a Perspectiva da Interseccionalidade”, recém-divulgado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ao focar o olhar nas vilas, a pesquisa fez um recorte não captado em estudos que mostram a média da cidade. Os números foram levantados em 2018, mas ainda servem como referência. “A pandemia exacerbou as desigualdades sociais e econômicas, amplificando os riscos de insegurança alimentar e má nutrição, o que intensificou os impactos negativos sobre a saúde das populações mais vulneráveis. Esses dados refletem tendência consistente ao longo do tempo”, garante a pesquisadora responsável pelo estudo, Karynna Ferreira. 

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Nilde, por exemplo, não estava nessa estatística. O marido dela, antes caminhoneiro, acidentou-se em trabalho há dois anos, quando perdeu a visão. Impossibilitado de voltar ao volante, ele ainda tenta se aposentar por invalidez. Enquanto aguardam a resolução burocrática para ter acesso ao benefício, é ela quem arca com os custos da casa onde vivem o casal e duas netas. Porém, o dinheiro que ela recebe como faxineira não é suficiente. “Eu recebo cesta básica e busco no fim do dia doações em sacolão. Mas é difícil, porque o lugar onde a gente mora não é valorizado. Já fiz entrevista de emprego e não fui contratada porque sou de vila”, conta.

Um relato que se encaixa na conclusão do estudo da UFMG: a fome tem cor, cara e endereço. “Identificamos que as populações em condições socioeconômicas desfavoráveis têm maior probabilidade de enfrentar insegurança alimentar em comparação com aquelas em melhores condições”, explica Karynna. Segundo ela, as mulheres negras representam o grupo com maior chance de não ter o que comer. “A insegurança alimentar se manifesta como a impossibilidade de acessar alimentos nutritivos, levando à desnutrição. Isso perpetua um ciclo de pobreza, comprometendo o desenvolvimento físico, cognitivo e emocional e limitando as oportunidades de uma vida digna”, diz.

Esse é o medo de Beatriz Gonçalves da Costa, 23. Ela mora no aglomerado da Serra com o marido, que é motoboy, e as duas filhas, de 3 e 5 anos. Sem rede de apoio para ajudá-la com as crianças, Beatriz teve que sair do emprego de recepcionista. A partir disso, as contas passaram a não fechar mais na casa dela. “Às vezes acontece de não termos dinheiro para ir ao sacolão e as crianças ficam sem frutas e legumes. O arroz e o feijão temos ganhado de um coletivo. Mas abrimos mão do que for preciso para manter as crianças alimentadas”, diz.

A subsecretária de Segurança Alimentar e Nutricional da Prefeitura de BH, Darklane Rodrigues, explica que o cenário já esteve pior. “A pandemia representou um grande desafio. Ainda consideramos o impacto dela, mas também vivenciamos nos últimos anos, nacionalmente, a redução do emprego e dos investimentos em políticas sociais, o que explica a situação”, diz. Para reverter o quadro, a PBH lançou um Plano de Combate à Fome, com ações como a distribuição de cestas básicas. A prefeitura tem como base dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que apontam 1,7% das residências da cidade com insegurança alimentar grave. Se cada casa tiver pelo menos um morador, são no mínimo 43 mil pessoas passando fome. Em Minas Gerais, são 2,6% da população.

Escassez no país é histórica e tem várias causas
As crises sanitária e econômica recentes explicam o retorno do Brasil para o Mapa da Fome da ONU, de onde havia saído em 2014. Porém, a escassez no país não é um problema atual e, por ser estrutural, demanda políticas públicas para ser erradicada, como explicam os especialistas.

A socióloga e professora do Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, Danielle Fernandes, explica que a fome nasce junto com a falta de recursos, fruto de desigualdades sociais. Para ela, sem acesso à saúde, à educação e à alimentação de qualidade, dificilmente os ciclos de pobreza podem ser rompidos. “O passado estrutural é muito forte”, explica.

Subsecretária de Segurança Alimentar e Nutricional da Prefeitura de Belo Horizonte, Darklane Rodrigues concorda: “A fome é sociológica, e não biológica. As tomadas de decisão construídas pela sociedade levam a situações de acesso e falta de acesso. As experiências que temos em BH nos mostram que não é possível acabar com a fome apenas com políticas públicas, mas que é possível reduzir a insegurança alimentar grave ao gerar empregos e oportunidades”, diz. O investimento em segurança alimentar em BH foi de R$ 136,7 milhões em 2023.