Mariana – Autora de oferta multibilionária para se fundir com outra gigante mundial da mineração, a multinacional BHP Billiton – uma das controladoras da mineradora Samarco, responsável pela tragédia que em 2015 devastou a Bacia do Rio Doce a partir de Mariana, na Região Central de Minas – poderia arcar com 98,5% das indenizações pedidas pelas vítimas em ação na Inglaterra, caso usasse nas reparações o valor que ofertou no negócio. Entre repasses de ações para a megafusão, a BHP ofereceu ao conselho de administração da também mineradora Anglo American, em valores corrigidos na cotação do dólar, R$ 226,3 bilhões (US$ 44,12 bilhões). A proposta, concretizada no último dia 7, foi recusada.

A tragédia de Mariana ocorreu há quase nove anos, quando a Barragem do Fundão, operada pela Samarco, se rompeu, devastando o que encontrou pela frente com uma avalanche de lama que arrasou o povoado de Bento Rodrigues, matou 19 pessoas, deixou cerca de mil desabrigadas e devastou o meio ambiente ao percorrer a Bacia do Rio Doce de Minas Gerais ao oceano, no litoral do Espírito Santo. Sem reparação completa e considerando insatisfatórias as respostas da Justiça brasileira, 700 mil atingidos, entre mineiros e capixabas, processam desde 2018 a BHP, multinacional anglo-australiana, na Justiça da Inglaterra. O valor da causa defendida pelo escritório internacional Pogust & Goodhead é estimado em R$ 230 bilhões.

Perguntada se a ação movida pelos atingidos em Londres pode ter atrapalhado a negociação com a Anglo American, principalmente porque a proposta envolve pagamento em ações, a BHP Billiton não respondeu. Mas essa é a impressão transmitida à reportagem por fontes que acompanham o processo, uma vez que, caso ocorra o julgamento, em vez de um acordo, a má publicidade e também questões de governança podem depreciar o valor das ações da BHP no curto prazo. Sem falar que, se a multinacional for condenada a somas ainda mais vultosas, isso poderia fazer os valores de seus papéis despencarem.

A angústia e o mercado

Apesar das dificuldades, enquanto vítimas da tragédia de Mariana seguem sem perspectiva de reparação e aguardam posição da Justiça internacional, a BHP demonstra que seu interesse pela fusão é grande. A primeira oferta feita anteriormente, e recusada em 26 de abril pelo Conselho de Administração da Anglo American, foi de US$ 39 bilhões. Ou seja, a proposta mais recente aumentou a proporção de ações que a BHP oferta, aumentando em 13% o valor corrigido para as ações no momento. Ainda assim, foi rejeitada.

A união entre BHP e Anglo American daria origem a um gigante global no setor da mineração, consolidando a posição de maior mineradora do mundo. A própria BHP destaca a obtenção de um portfólio de ativos de alto valor, abrangendo cobre, potássio, minério de ferro, platina e carvão metalúrgico.

Traria também um impacto significativo ao mercado brasileiro, já que a Anglo American possui as reservas do complexo Minas-Rio, que produziram 24 milhões de toneladas de minério de ferro em 2023, gerando US$ 1,4 bilhão. No início do ano, a Vale comprou 15% do covmplexo.

“A mais recente proposta da BHP novamente falha em reconhecer o valor inerente à Anglo American. A proposta da BHP também continua a ter uma estrutura altamente pouco atraente. Isso deixa a Anglo American e seus acionistas em risco devido à substancial incerteza e ao risco”, disse Stuart Chambers, presidente da Anglo American.

“A BHP apresentou uma proposta revisada ao Conselho da Anglo American que acreditamos firmemente ser vantajosa para os acionistas da BHP e da Anglo American. Estamos desapontados que esta segunda proposta tenha sido rejeitada. A proposta revisada representa um aumento de 15% na taxa de troca da fusão e eleva a participação acionária agregada dos acionistas da Anglo American no grupo combinado para 16,6%, ante 14,8% na primeira proposta da BHP”, disse Mike Henry, CEO da BHP.

Atingidos seguem à espera de justiça

Derrotada em 2022, quando o Tribunal de Apelação de Londres decidiu julgar a ação dos atingidos pela tragédia de Mariana, a BHP Billiton procurou incluir a Vale no processo, uma vez que cada mineradora responde por metade do controle da Samarco, empresa que operava a barragem que se rompeu em 5 de novembro de 2015. O julgamento em Londres, marcado para começar em 7 de outubro de 2024, tem perspectiva de durar 14 semanas.

Quase nove anos depois da devastação provocada pela ruptura e desprendimento de quase 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro – sete vezes mais do que o rompimento de Brumadinho (2019) –, poucos foram ressarcidos e conseguiram retomar o curso de suas vidas. A muitos deles, restou tentar amparo na Justiça na Inglaterra.

Longe dos negócios, o drama dos atingidos
A distância da discussão sobre a possível fusão bilionária entre as mineradoras BHP Billiton e Anglo American é muito maior para os atingidos pela tragédia da Samarco do que os 278 quilômetros que separam Mariana (onde fica a barragem que se rompeu) de Conceição do Mato Dentro (área de operação da Anglo American). Desde que a maior catástrofe socioeconômica e ambiental do Brasil se abateu sobre a Bacia Hidrográfica do Rio Doce, há quase nove anos, poucas famílias foram indenizadas e reassentadas, frente a uma estimativa de mais de 700 mil atingidos e mil desabrigados que moraram meses em hotéis e outros que ainda vivem em casas alugadas.

Muitos dizem que a luta pela sobrevivência e o restabelecimento de seus modos de vida são mais urgentes do que o jogo multibilionário para definir quem vai controlar minas exploradas planeta afora. Moradias definitivas e indenizações ainda não foram totalmente resolvidas nem em Mariana, onde a maioria dos atingidos perdeu suas casas.

“Meu pai, meu irmão e eu fomos reconhecidos como atingidos. Eu recebi uma indenização. Minha mãe não é reconhecida até hoje. Como pode um absurdo desses se ela é de lá, tem casa lá e vivia lá?”, questiona o motorista Cristiano Sales, de 41 anos, um dos atingidos de Bento Rodrigues, primeira comunidade devastada.

Ele vive há um ano em uma casa no reassentamento em que a Fundação Renova, criada pelas mineradoras para fazer a reparação dos atingidos, está reconstruindo parte das comunidades devastadas. Contudo, o chamado “Novo Bento” ainda está longe do que Cristiano e sua família consideram ideal.

“No Bento original, morava em uma casa de tijolos, de quatro cômodos. Meu pai tinha um bar junto da casa. Ali vivíamos meu pai, meu irmão e eu. Os irmãos casados vinham no fim de semana. Agora, a casa é menor, minha irmã veio de Belo Horizonte cuidar do meu pai e mora com a gente. Meu quarto é tão pequeno que não posso comprar móveis de fábrica, só planejados. Não tem bar nem os espaços que a gente tinha de quintal”, compara.

Uma comunidade desmembrada

Quando ocorreu o rompimento da barragem da Samarco em Mariana, os atingidos que não tinham casas na cidade ou parentes para recebê-los ficaram primeiro no ginásio na Arena Mariana; depois, a Justiça determinou que fossem para hotéis e para casas alugadas antes do Natal de 2015. “Nos hotéis, a gente já começou a ser separado, porque não cabia a comunidade toda. Depois, com casas alugadas por todo o município, separaram a gente ainda mais. Agora, muitos só se encontram nas reuniões, em aniversários, festas e velórios”, lamenta a assessora técnica Mônica dos Santos, de 39 anos, também atingida.

A casa da mãe dela no assentamento de Novo Bento Rodrigues, em construção pela Fundação Renova, criada para lidar com os reflexos do desastre, levou quatro anos até que o projeto ficasse pronto, afirma Mônica. As obras começaram há menos de um mês.

Ainda morando em Mariana, Mônica e sua família não aceitaram as indenizações propostas. “As propostas que a Renova faz em nome das empresas são imposições. Estamos então com a ação na Inglaterra e uma na Justiça do Brasil. Mas nem todo o dinheiro que recebermos vai nos trazer de volta aquilo que perdemos”, queixa-se.

“Eu perdi meu pai com 7 anos. Para me lembrar da fisionomia dele, eu tinha de pegar uma foto. Hoje essa foto não existe mais. Não tem dinheiro que me pague de volta essa foto. Acho injusto também que a empresa que cometeu o crime contra mim coloque valor nas coisas que ela tirou de mim”, afirma.

Balanço das reparações
Para gerenciar e executar a reparação pelas consequências do rompimento da Barragem do Fundão, um arranjo entre as controladoras Vale e BHP Billiton, envolvendo entes do estado de Minas Gerais e federais, criou a Fundação Renova, em 2016. Segundo a entidade, até 31 de março de 2024 foram destinados R$ 35,8 bilhões a ações de reparação e compensação, sendo R$ 14,18 bilhões para o pagamento de indenizações e R$ 2,78 bilhões em auxílios emergenciais, em 442,7 mil acordos.

Ocorreram 534 casos do que a entidade classifica como restituição do direito à moradia, com entrega do imóvel ou pagamento de indenização, e outros 178 têm solução definida.

Um total de 179 famílias tem atendimento de moradias temporárias, segundo a Renova. Em Novo Bento Rodrigues, dos 248 imóveis previstos, 115 foram entregues; 192 construções estão com obras finalizadas, incluindo escola, estações de tratamento de água e esgoto e posto de serviços, de acordo com a entidade.

Em Paracatu, diz a fundação, dos 94 imóveis previstos, 50 foram entregues; 75 construções estão com obras finalizadas, incluindo escolas de ensino fundamental e infantil, posto de saúde e posto de serviços.

R$ 226,3 bilhões
Considerando a cotação do dólar, esse foi o valor ofertado em ações pela multinacional BHP para fusão com a Anglo American, no que daria origem à maior mineradora do planeta

R$ 230 bilhões
É o valor estimado da causa movida em Londres contra a BHP pelo escritório internacional de advocacia que representa os atingidos pela tragédia de Mariana, há quase nove anos à espera de justiça

700 mil
É o número de atingidos que pleiteiam na Justiça da Inglaterra reparações pela tragédia de Mariana após o rompimento da barragem da Samarco, que tinha na BHP uma das controladoras