Ancara e Washington se negam a aumentar a pressão sobre Riad, mas várias empresas privadas cancelaram sua colaboração
A Turquia possui provas em áudio e vídeo do assassinato do jornalista saudita Jamal Khashoggi no consulado da Arábia Saudita em Istambul, embora não as divulgue porque revelariam o modo como ela espiona diplomatas estrangeiros − uma prática mais comum do que os Governos estão dispostos a reconhecer, mas vetada pela Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, que estabelece a inviolabilidade de consulados e embaixadas. Essa é a conclusão do jornal The Washington Post, com o qual Khashoggi colaborava, depois de falar com fontes de segurança norte-americanas e turcas. A BBC também informou que fontes oficiais turcas asseguraram contar com material de áudio e vídeo que comprova que Khashoggi foi torturado e assassinado dentro do consulado.
O rastro do jornalista, crítico do atual Governo de seu país e principalmente do príncipe herdeiro Mohamed Bin Salman, foi perdido no dia 2, quando ele entrou no consulado saudita em Istambul. Embora em público as autoridades turcas se mostrem cautelosas sobre o caso, em privado elas transmitiram a jornalistas e a pessoas ligadas a Khashoggi a hipótese do assassinato, e enviaram as supostas provas aos serviços de inteligência dos EUA. “As gravações de áudio no interior da embaixada revelam o que ocorreu com Jamal [Khashoggi] depois de entrar. Pode-se escutar sua voz e a voz de homens falando em árabe. Pode-se ouvir como foi interrogado, torturado e assassinado”, afirma uma fonte turca citada pelo Post.
O jornal norte-americano não é o único a divulgar essa versão. No domingo, o presidente da Associação da Imprensa Turco-Árabe e amigo da vítima, Turan Kislakçi, explicou ao EL PAÍS que as autoridades turcas tinham compartilhado com ele e outras pessoas ligadas a Khashoggi “dados sobre a investigação” e assegurou que tinham “informação concreta” sobre seu assassinato “por uma equipe de sauditas”. Esses 15 agentes da espionagem saudita, entre eles um perito forense, chegaram a Istambulem vários voos ao longo do próprio 2 de outubro, e quase todos partiram em dois jatos privados ao final do dia. A investigação vazou imagens dos agentes sauditas − três deles supostamente membros do guarda pessoal de Bin Salman − entrando no consulado e saindo em vários veículos com placa diplomática.
Essa versão também é reforçada pelo jornalista Kemal Öztürk, do jornal Yeni Safak, muito próximo do Governo de Recep Tayyip Erdogan. “O consulado saudita diz que não tem gravações [da saída a pé de Khashoggi do edifício]. Mas nós temos nossas próprias câmeras. Como se sabe, também há um vídeo sobre o momento do assassinato de Jamal Khashoggi”, disse ele em uma entrevista transmitida pela TV. “Diante de cada embaixada e consulado há guardas de segurança do país anfitrião. No caso [das representações] de Estados importantes ou complicados, também há membros da espionagem disfarçados de guardas de segurança. As embaixadas dos países de risco são vigiadas. Além de seus próprios sistemas de segurança, há outro instalado pela própria Turquia, porque se ocorre algo, a responsabilidade é da Turquia”, assinalou.
“Embora eu pessoalmente não tenha provas do assassinato, o mais provável é que tenha ocorrido, segundo as informações que chegaram até mim”, afirmou nesta sexta-feira ao EL PAÍS Yasin Aktay, amigo de Khashoggi e vice-presidente do partido AKP, que governa a Turquia desde 2002. “São acusações muito graves e a Arábia Saudita tem de fornecer provas convincentes se, como diz, Jamal saiu a pé do consulado. A bola está no lado dos sauditas”, acrescentou.
Ainda não se sabe se o objetivo dos agentes sauditas era assassinar Khashoggi ou se este não pôde resistir às torturas que supostamente sofreu. Também é investigada a hipótese de que o corpo do jornalista tenha sido esquartejado para facilitar seu transporte para o exterior e sua ocultação. Foram recolhidos os pertences de Khashoggi para a extração de amostras de DNA e estão sendo analisados os dois celulares que sua noiva, a turca Hatice Cengiz, deixou antes de ir ao consulado. Um deles estaria conectado ao relógio Apple que o jornalista estava usando no momento de seu desaparecimento e que poderia ter informações sobre seu paradeiro, seu trajeto e seus sinais vitais.
Até agora, os agentes turcos não investigaram o edifício consular, embora na terça-feira as autoridades sauditas tenham concordado em permitir que ele fosse examinado. De acordo com dois membros da equipe de investigação entrevistados pelo The Washington Post, as autoridades sauditas “não cooperam” e não garantiram o acesso ao consulado nem à residência do cônsul, para onde seguiu um dos veículos nos quais estavam supostamente os agentes sauditas após permanecer três horas no consulado. Nesta sexta-feira, o porta-voz da presidência turca, Ibrahim Kalin, anunciou que, a pedido de Riad, foi formada uma “equipe de trabalho conjunto” reunindo policiais turcos e os agentes sauditas enviados para investigar o caso.
Protesto de empresas
As relações políticas entre a Turquia e Arábia Saudita se deterioraram nos últimos anos, mas os laços econômicos são fortes, o que explica a cautela das autoridades turcas em público. A Arábia Saudita é um importante mercado para as exportações turcas e numerosas empreiteiras da Turquia atuam no reino. Além disso, muitos empresários sauditas investiram na Turquia (em empresas e imóveis) e meio milhão de turistas sauditas visitam anualmente o país euro-asiático, principalmente a região do mar Negro, que recebe uma atenção especial das autoridades porque a família Erdogan é de lá.
A mesma cautela é demonstrada pelos Estados Unidos, onde o presidente Donald Trump manifestou sua preocupação pelo destino de Khashoggi, mas descartou a imposição de sanções: “[Os sauditas] gastam 110 bilhões de dólares [416 bilhões de reais] comprando nosso equipamento militar e outras coisas. Se nós não o vendermos a eles, dirão ‘muito obrigado, vamos comprar da Rússia ou da China’. Isso não nos ajudaria quanto aos postos de trabalho e às encomendas que nossas empresas perderiam”.
No entanto, várias empresas privadas adotaram medidas de represália depois do caso Khashoggi. Representantes de Viacom, The New York Times, The Economist, CNBC, Financial Times e Bloomberg anunciaram que sua retirada da conferência de investidores Future Investment Initiative, conhecida como “Davos do deserto”, que será realizada a partir do dia 23 na capital saudita. Um dos fundadores da AOL, o multimilionário Steve Case, também cancelou sua participação “até que haja nova informação sobre Jamal Khashoggi”.
O desaparecimento do jornalista também levou a empresa de consultoria norte-americana The Harbour Group a anunciar o fim de seu trabalho de assessoria para Riad. Mais doloroso para a monarquia saudita foi o anúncio do grupo Virgin, que suspendeu as negociações sobre o investimento de 1 bilhão de dólares (3,8 bilhões de reais) na Arábia Saudita. “O que ocorreu na Turquia em relação ao desaparecimento de Jamal Khashoggi, se for comprovado, mudaria completamente a capacidade de qualquer ocidental de fazer negócios na Arábia Saudita”, afirmou o magnata britânico e proprietário do grupo Virgin, Richard Branson, em um comunicado.