As recessões econômicas costumam cobrar cabeças dos presidentes; as guerras, por outro lado, têm a capacidade de traçar neles uma efígie de chefe de família a quem se agarrar fortemente quando a nação treme. A crise mundial gerada pela pandemia do coronavírus tem algo de ambas as coisas, e Donald Trump tenta se colocar no lado certo do relato. Após um mês e meio minimizando o perigo do surto, inclusive fazendo piada, o mandatário norte-americano se pôs à frente do grupo de crise com uma mensagem direta e simples, como o caracteriza: “Sou um presidente em tempo de guerra”, “isto é uma guerra, com um inimigo invisível”.
O atual presidente republicano, um dos mais polêmicos que os Estados Unidos já tiveram em sua história moderna, vinha orientando sua estratégia de reeleição em novembro para a bonança econômica ―pleno emprego, recordes nas Bolsas, cortes tributários― e para a demonização da oposição democrata como novo agente de um socialismo totalitário. Mas um inimigo “invisível”, como diz Trump, ou melhor, microscópico, fez a realidade americana voar pelos ares. Já não há prosperidade, apenas medo, não há mais ataque ao intervencionismo do Governo, e sim o resgate público a empresas e cidadãos num valor de dois trilhões de dólares, o mais volumoso da história.
OS EUA já são o país do mundo com mais casos confirmados da Covid-19, segundo o centro de dados da Universidade Johns Hopkins, e os mortos superam um milhar. A cifra de trabalhadores que se cadastraram para receber o seguro-desemprego alcançou o recorde de 3,3 milhões na semana passada, e Trump decidiu redefinir seu papel através da plataforma que melhor domina.
O presidente lidera todas e cada uma das entrevistas coletivas diárias do grupo de crise formado para confrontar o coronavírus, sessões televisionadas com mais de uma hora de duração, dignas de estudo. Sempre evita dar cifras de mortos ou novos contágios, entra em seus habituais bate-bocas com jornalistas e cai no sarcasmo, como quando na semana passada lhe comunicaram que o senador republicano Mitt Romney, um de seus arqui-inimigos dentro do partido, estava isolado por risco de contágio. “Ah, que pena”, deixou escapar. Continua fiel ao espírito dos reality shows que caracteriza sua presidência, em resumo, mas também aproveita para lançar mão do discurso épico. “Cada geração foi chamada a fazer sacrifícios compartilhados pelo bem da nação”, disse em 18 de março, “Agora é a nossa hora”, acrescentou, recordando os heróis da Segunda Guerra Mundial. “Devemos nos sacrificar juntos porque estamos juntos nisto.”
De acordo com uma pesquisa Gallup divulgada nesta quarta-feira, o índice de aprovação de Trump alcançou o nível mais alto de sua presidência, 49%, empatando com o resultado registrado no final de janeiro e começo de fevereiro, quando sua absolvição pelo Senado no processo de impeachment era iminente. A melhora da popularidade, de cinco pontos entre 16 e 22 de março, é ainda mais expressiva porque se baseia na evolução dos que se declaram democratas (6 pontos a mais) e independentes (8 pontos). E 60% dos pesquisados aprovam sua gestão da crise. A tendência coincide com outro levantamento publicado na sexta-feira pela ABC News/Ipsos, que refletia 55% de apoio à sua gestão da epidemia, quando na semana anterior só 43% a respaldavam.
Historicamente, os EUA se unem em torno de seus presidentes quando se sentem diante da vertigem de um ataque ou de uma ameaça, de Roosevelt a Bush filho; de Madison a Lincoln, que fez seu segundo discurso de posse durante os estertores da Guerra Civil. O índice de aprovação de George W. Bush disparou 35 pontos depois dos atentados de 11 de setembro de 2001 e ele foi reeleito pouco depois da invasão do Iraque. O de Roosevelt subiu 12 pontos após o ataque japonês a Pearl Harbour.
Se for preciso escolher um ponto de inflexão na gestão desta crise por parte de Trump, seria o 11 de março, quando se dirigiu à nação do Salão Oval e anunciou uma série de medidas, entre elas a suspensão de viagens procedentes da Europa. Dois dias depois, declarou a emergência nacional. No começo do mês, já tinha bloqueado as entradas de viajantes vindos da China e Irã, mas revogou as primeiras restrições sobre a Coreia do Sul e as zonas afetadas da Itália. Foi também a partir de então que retirou o vice-presidente Mike Pence da linha de frente no grupo de crise e passou a comandar as entrevistas coletivas sobre o assunto.
Enquanto isso, a presença de seus rivais democratas nos meios de comunicação se diluiu. As restrições de movimentos e de atos públicos impostos para frear os contágios na prática deixou a campanha democrata suspensa. O ex-vice-presidente Joe Biden franco favorito à indicação, embora o senador Bernie Sanders continue na disputa (se esforça para ocupar um espaço no debate público a partir de um estúdio de televisão instalado na sua casa), em Wilmington (Delaware). Se Trump afirma que é preciso anular as restrições o quanto antes, porque a crise econômica pode acabar provocando mais mortes que o coronavírus, tanto Sanders como Biden lhe dão a réplica, mas a perda de protagonismo é cada vez mais evidente.
Para Trump, a questão é quanto pesarão as semanas em que minimizou esta crise e não preparou o país com os equipamentos necessários. Como quando disse, em 22 de janeiro, que “temos tudo sob controle, vamos ficar bem”, ou em 27 de fevereiro ao dizer que “isto é o novo boato” da imprensa, que “está em modo histeria”.
Mikhail Gorbachov, o último líder soviético, escreveu em 2006 que o desastre nuclear de Chernobyl, em 1986 foi talvez mais definitivo que sua Perestroika [abertura] para a queda do regime comunista. Trump está tentando que esta crise seja seu Pearl Harbour, não seu Chernobyl.