Maria Verza
AP, Cuauhtemoc (México)
UOL
Um par de luvas de borracha cuidadosamente abre um saco de papel e espalha o conteúdo sobre a mesa. Centenas de fragmentos de ossos queimados se esparramam.
Os pedaços parecem pedras vulcânicas. No entanto, para as mãos que gentilmente os espalham sobre a mesa, cada um deles têm um nome e carrega uma história que ainda ninguém sabe, mas que em algum lugar alguém está desesperado para ouvir.
Os fragmentos fornecidos pelos investigadores à equipe Argentina de Antropologia Forense são parte dos corpos de dezenas de milhares de pessoas que desapareceram durante a longa e sangrenta guerra às drogas do México.
Estes pedaços específicos ossos vieram de um dos três ranchos isolados na cidade de Cuauhtemoc, na fronteira norte do estado de Chihuahua, onde os corpos das vítimas foram dissolvidos ou queimados em tambores.
Na sala também estão outras caixas e sacos plásticos com etiquetas indicando o local e as condições em que foram encontrados, como "Rancho Dolores" e "fragmentos manchados com diesel".
O presidente Enrique Peña Nieto se prepara para deixar o cargo no fim do ano, e assim mais uma administração terá começado e terminado com pouco progresso ao resolver um dos maiores problemas do México: os desaparecidos.
A descrença nas autoridades mexicanas só cresce e muitas famílias veem nos especialistas argentinos a única esperança de ter respostas para um sofrimento que já se prolongou por uma década ou mais.
Enquanto isso, os desaparecimentos continuam: 21.286 durante o governo atual, desde 1 de dezembro de 2012.
Cuauhtemoc, um centro rural ao lado das imponentes montanhas da Sierra Tarahumara, tem somente 170 mil habitantes, mas é apelidado de "a capital dos desaparecidos" por causa da taxa de sequestro. O promotor local listou 676 casos de desaparecimentos na região desde 2008, e 395 estão desaparecidos só na cidade.
Tragédia familiar
Um dos maiores casos é o da família Muñoz, que teve oito pessoas desaparecidas sete anos atrás.
A família não se reúne mais na velha casa dos trabalhadores ferroviários, à sombra de árvores, nos arredores de Cuauhtemoc. Eles estavam lá celebrando o Dia dos Pais em 21 de junho de 2011, quando o mundo desabou.
Durante a tarde, estranhos apareceram disparando insultos, de acordo com membros da família. Uma briga começou e eles chamaram a polícia. Os policiais vieram, mas não fizeram nada. Um dos Muñoz pegou o rádio da viatura e jogou contra a janela, o que resultou em ameaças por parte dos policiais, segundo os familiares.
Algumas horas depois, uma dúzia de caminhonetes com homens armados e uniformizados, usando máscaras de ski, apareceu na casa. Os homens entraram e disseram que procuravam o rádio.
"Nós todos corremos", conta Emma Veleta, a matriarca da família, ao lado de um pôster com fotos de seu marido, quatro filhos, neto e sobrinho que foram levados naquele dia.
"Alguns foram em uma direção, outros em outra". Um dos filhos a agarrou e implorou: "Mamãe, não deixe que me levem!". Mas foi inútil, a mulher foi jogada no chão.
"Foi assim que eles o pegaram de minhas mãos", disse Veleta. "Eu nunca os vi de novo, só ouvi seus gritos".
Eles pegaram oito homens. As autoridades fizeram pouco para descobrir o que aconteceu.
"Eles se esqueceram de nós", disse Albino Cruz, cujo filho Oscar desapareceu naquele dia. "Nós vamos morrer assim".
Cruz e sua mulher, Maribel Muñoz, ainda moram na casa, e a tristeza se espalhou por toda a família como uma doença. Sua filha de três anos de idade mostra uma foto da última vítima colateral do desaparecimento: o filho mais velho de Cruz, que se enforcou em desespero.
Impunidade
Casos de desaparecimento no México raramente são resolvidos porque a corrupção complica as investigações e encoraja a impunidade. Os recursos são escassos.
Especialistas dizem que os níveis de violência no país são similares aos encontrados em zonas de guerra, embora a capacidade forense seja a de uma nação em paz.
O governo federal diz que aprimora as leis e ajuda os estados a melhorarem seus métodos de lidar com desaparecimentos. Eles esperam que um dia haja um banco de dados nacional de desaparecidos que possa ser cruzado com os milhares de corpos não identificados.
Sete anos após o desaparecimento dos Muñoz, a única pista que família encontrou foi uma fivela de cinto que talvez tenha pertencido a Toribio, o marido de 61 anos de Veleta. Uma criança a reconheceu em meio a dezenas de fragmentos analisados pelos argentinos.
Promotores da região querem fechar o caso, mas a família ainda busca evidências. Os investigadores argentinos querem encontrar uma combinação de DNA, ou pelo menos algumas respostas.
"Nada foi provado", disse Luisa Muñoz, irmã de Toribio e mãe de Luis Romo, também desaparecido naquele dia, na época com 21 anos.
A família acredita que a polícia estava envolvida nos desaparecimentos, o que explicaria por que o estado falhou na ação. O procurador assistente Jesus Manuel Carrasco disse que os policiais que foram para a propriedade da família naquele dia já não trabalham mais na polícia.
"Não podemos excluir a possibilidade de que estivessem diretamente envolvidos, mas não há nenhuma evidência disso", disse Carrasco.
Guerra às drogas
O número de desaparecidos no México começou a subir em 2006, quando o presidente Felipe Calderón lançou uma ofensiva contra os cartéis de droga. Familiares das vítimas tinham medo de reportar os crimes, e autoridades desviavam o olhar e às vezes cooperavam diretamente, disse Dulitzky.
Um véu de silêncio pairou sobre o México, cobrindo inclusive Cuauhtemoc.
A cidade, até então famosa por suas rotas para as montanhas, estava se tornando uma pólo para as drogas, com os cartéis de Juarez e Sinaloa brigando pela área. O comércio local e a localização, a 350 km da fronteira com os Estados Unidos, fizeram da cidade um ponto atrativo para exportar drogas.
A cidade era "uma máquina de lavar roupa perfeita", disse Carrasco.
Os dois cartéis se infiltraram em todos os níveis da cidade usando dinheiro e ameaças.
As pessoas não apareciam mortas nas ruas, elas simplesmente desapareciam. A falta de cadáveres tornava a possibilidade de acusação — sempre improvável — quase inexistente.
As famílias que denunciavam crimes eram ignoradas ou ameaçadas. Algumas decidiram deixar a cidade.
Os cartéis ainda brigam por Cuauhtemoc e as pessoas ainda desaparecem. Mas uma lei federal desde janeiro permite que as autoridades investiguem os crimes mesmo sem cadáver.
Esperança estrangeira
As famílias têm esperanças de que os investigadores argentinos possam ajudar, já que eles vêm fazendo isso pelo México por uma década. Autoridades nem sempre gostam dos especialistas internacionais, porque sua presença evidencia as falhas locais.
A equipe, no entanto, sempre trabalha com permissão do governo para que os resultados possam ser admitidos em tribunal, e um membro está em um novo órgão consultivo para lidar com os desaparecimentos.
Em Cuauhtemoc, os argentinos chegaram após o governador Cesar Duarte — agora acusado de vários crimes e foragido — ter deixado o cargo em dezembro de 2016.
Promotores do Estado coletaram amostras genéticas das famílias para tentar uma combinação com os fragmentos, incluindo da família Muñoz, mas os testes nunca foram feitos de fato.
A equipe forense repetiu o procedimento com seus próprios métodos e parâmetros, nos quais incluem longas entrevistas com familiares para achar características específicas que possam ajudar na identificação dos ossos. Até agora, fizeram 13 identificações na região, todas a partir de fragmentos de ossos queimados encontrados nos ranchos no final de 2011.
A primeira identificação foi Amir Gutierrez, um mecânico de 33 anos que desapareceu em 2011. Uma vértebra encontrada foi identificada como dele.
Sua mãe, Idalia Gutierrez, conta sobre o momento em que a equipe argentina disse que tinham conseguido uma combinação de DNA. Foi uma notícia difícil, mas que também trouxe uma espécie de alívio.
"Eu queria encontrá-lo, vivo ou morto", ela disse. "Na minha cabeça, eu estava dizendo para mim mesma, eu não posso chorar, tenho que ficar calma, porque se eu chorar não vou conseguir entender o que eles estão explicando para mim".
Mercedes Doretti, líder de uma equipe forense do México e América Central, disse que os investigadores se preparam muito para dar as notícias aos familiares, porque é um "momento terrivelmente difícil".
Ela disse que o único jeito de a família confiar no que está sendo dito é por meio da verdade, não importa o quão difícil ela seja. Os antropólogos argentinos tentam examinar tudo para que a família não tenha dúvidas — ainda que eles não tenham nada concreto para enterrar.
"Às vezes os fragmentos são tão pequenos que você não consegue entregar nada físico aos familiares", disse Doretti. "Aí é uma questão de confiança".
Nesse sentido, Gutierrez é sortuda. Ela tem uma vértebra — e a esperança de que algo, outro pequeno pedaço de Amir seja descoberto. Quando ela tiver coletado tudo que houver, ela vai enterrá-lo.
"Ele terá seu funeral, como deve ser", disse Gutierrez. "Depois disso, não vou procurar mais".
Última chance
Nas duas últimas caixas do rancho Dolores, as luvas de borracha escolheram 109 fragmentos que talvez contenham DNA ou outro tipo de informação útil para serem enviados para o laboratório principal na Argentina.
O restante é cuidadosamente colocado em um envelope, fechado e selado como evidência para ser guardada com cuidado.
Luisa Muñoz não quer perder as esperanças e ainda espera o resultado da última rodada de testes. Seus filhos nos Estados Unidos querem que ela se junte a eles, mas ela não quer deixar sua casa e sua pequena loja na vizinhança de Cuauhtemoc para caso um dia Luis ligue ou volte.
Ou caso um dia os argentinos deem a ela um pedaço de osso que a fará chorar.