Há quatro anos morando nos Estados Unidos, o afegão K.S., 30 anos, visitava a família em Cabul quando foi surpreendido pela retomada de poder por parte do Talibã. Em 18 de agosto, três dias depois da chegada dos extremistas à capital, ele conseguiu embarcar rumo aos EUA, em uma viagem tumultuada, com escalas no Catar e na Alemanha. Ontem, dentro do avião que o levaria a Chicago, onde reside com parte da família, K.S. não escondia o desespero ante a decisão dos talibãs de impedirem a saída de civis afegãos do país.

A notícia de que soldados norte-americanos começaram a deixar o Aeroporto Internacional Hamid Karzai aumentou sua angústia. “Por favor, ajudem os meus dois irmãos a entrarem no aeroporto. Se eles retornarem para suas casas, os talibãs o matarão”, implorou K.S., que trabalhou para as forças dos EUA. Enquanto o pânico se apossava dos civis aglomerados diante do terminal aéreo, o presidente Joe Biden avisava que a missão no Afeganistão está “em vias de ser concluída” em 31 de agosto — a condição é de que o Talibã permita acesso ao aeroporto de quem desejar fugi — e alertava para ameaça terrorista.

“Estamos a caminho de finalizar (a ocupação do Afeganistão) em 31 de agosto. Eu estou determinado a completar a nossa missão”, declarou Biden, em um discurso proferido na Casa Branca marcado pelo atraso, repetindo o que foi dito durante encontro virtual do G7 (o grupo dos países mais industrializados do mundo), mais cedo.

“A conclusão em 31 de agosto depende de o Talibã continuar a cooperar e permitir acesso ao aeroporto para aqueles que estão sendo transportados para fora (do país), sem que haja interrupções em nossas operações”, acrescentou, ao revelar que ordenou ao Pentágono a elaboração de “planos de contingência” para alterar a data. O democrata enfrenta duas frentes de pressão: aliados pedem que ele prolongue a permanência militar no Afeganistão; os norte-americanos exigem o fim da guerra.

Ao defender a retirada das tropas, Biden citou “um risco crescente” de ataques do Estado Islâmico. “Quanto mais tempo ficarmos, haverá o risco agudo e crescente de um ataque de um grupo terrorista conhecido como ISIS-K, um afiliado do ISIS (Estado Islâmico) no Afeganistão, também inimigo jurado do Talibã. Cada dia em solo é outro dia em que sabemos que o ISIS-K tentará atingir o aeroporto e atacar as forças dos EUA e dos aliados, além de civis inocentes. Segundo Biden, desde 14 de agosto, véspera da chegada dos talibãs a Cabul, 70.700 pessoas foram resgatadas de Cabul, mais de 12 mil somente nesta terça-feira.

Durante o encontro virtual de ontem, o G7 solicitou aos talibãs a garantia de passagem segura até o aeroporto, após 31 de agosto. Os líderes dos países do grupo também acordaram um “roteiro” sobre como vão se relacionar com os insurgentes no futuro. Eles expressaram “grave preocupação” com a situação no Afeganistão e lançaram um “apelo à calma e à moderação”. A intenção é evitar uma crise humanitária de consequências imprevisíveis para toda a região.

Questionado pela reportagem sobre o veto à retirada de afegãos de Cabul, Mohammed Naeem — porta-voz do escritório político do Talibã em Doha (Catar) — respondeu com nova pergunta. “Você soube o que está acontecendo no aeroporto de Cabul? As pessoas estão morrendo, ao se lançarem de aviões e por causa de tiros”, afirmou, por meio do WhatsApp. Em nova entrevista coletiva, a segunda em uma semana, Zabihullah Mujahid, outro porta-voz do Talibã, insistiu que as retiradas por parte dos EUA e aliados deverão ser encerradas em 31 de agosto.

Para a mesma data está previsto o fim da presença militar estrangeira no Afeganistão. “Eles têm aviões, eles têm o aeroporto, deveriam tirar seus cidadãos e empreiteiros daqui”, disse. “Mas não deveriam incitar os afegãos a fugirem do Afeganistão.” Mujahid acusou os norte-americanos de levarem do país “especialistas afegãos”, como engenheiros e médicos.

Mulheres
Sob justificativa da volátil situação no país, Mujahid disse que a segurança das afegãs é uma responsabilidade do Talibã. Por isso, pediu às mulheres que permaneçam em suas casas. “Algumas vezes, nossas equipes de segurança não são bem treinadas o bastante para lidar com as mulheres. Então, encontram problemas, por esta razão”, afirmou o porta-voz talibã.

“Então, nós solicitamos às mulheres que fiquem em suas casas, até que desenvolvamos um procedimento. Elas não serão demitidas. Elas continuarão a receber seus salários, mesmo que não apareçam para trabalhar.” De acordo com Mujahid, a restrição imposta às mulheres “é um procedimento muito temporário”.

O Banco Mundial suspendeu a ajuda ao Afeganistão, em retaliação à tomada de poder pelo Talibã. “Suspendemos as transferências (financeiras) no âmbito das nossas operações no Afeganistão e vigiamos e avaliamos a situação de perto”, explicou à agência France-Presse uma porta-voz da entidade.

“Estamos profundamente preocupados com a situação no Afeganistão e seu impacto nas perspectivas de desenvolvimento do país, em particular para as mulheres”, acrescentou. A instituição tinha cerca de 20 projetos de desenvolvimento no Afeganistão. Desde 2002, o Banco Mundial forneceu cerca de US$ 5,3 bilhões (ou R$ 27,8 bilhões).

Encontro secreto
O diretor da Agência Central de Inteligência americana (CIA), William Burns (E), teve uma reunião confidencial em Cabul com o cofundador do Talibã Abdul Ghani Baradar (D), anteontem, informou o jornal The Washington Post. Este foi o encontro de mais alto nível entre os Estados Unidos e o regime fundamentalista desde a tomada de Cabul e o retorno dos talibãs ao poder. A decisão do presidente Biden de enviar Burns para o Afeganistão ilustra a gravidade da crise para seu governo.

O mulá Abdul Ghani Baradar, que liderou o escritório político dos talibãs no Catar, é agora o homem-forte do novo regime. Ao ser procurado pela AFP, um porta-voz da CIA não confirmou a reunião e disse que a agência “nunca fala sobre os deslocamentos do diretor”. O Washington Post não revelou o teor das conversas, mas provavelmente abordaram o atraso nas retiradas do aeroporto da capital afegã.