Versão original era de que Montalva havia morrido em decorrência de complicações em cirurgia de hérnia. Ex-agentes do aparato repressivo chileno foram condenados a até 10 anos de prisão


Santiago
Depois de quase duas décadas de investigação, os tribunais chilenos determinaram nesta quarta-feira que o ex-presidente democrata-cristão Eduardo Frei Montalva não morreu na Clínica Santa Maria em decorrência de complicações de uma hérnia, mas foi um vítima de homicídio por envenenamento. A morte de Frei, em 1982 –no meio da ditadura de Augusto Pinochet–, se tornou um dos casos judiciais mais simbólicos no Chile. Em sua decisão, o juiz Alejandro Madrid condenou seis pessoas pela participação na morte de Frei: dois médicos, dois tanatologistas e dois membros da Central Nacional de Informações (CNI, a polícia secreta de Pinochet). "Uma substância química evidentemente contribuiu para a situação final do ex-presidente", disse o juiz Madrid em uma entrevista ao portal do Poder Judiciário chileno.

Segundo o advogado da família Frei, Nelson Caucoto, "a justiça se impôs à impunidade". "Temos de nos alegrar porque depois de uma longuíssima investigação foi emitida uma sentença condenatória em um crime sem precedentes no Chile, na maior operação de inteligência ocorrida no período da República", enfatizou, logo após a divulgação da sentença.

Pai do também ex-presidente Eduardo Frei Ruiz-Tagle, que governou o Chile entre 1994 e 2000 – já na democracia–, o ex-presidente foi fundador da Democracia Cristã chilena, um partido que moldou a política do país na segunda metade do século XX. Durante seu governo, entre 1964 e 1970, realizou mudanças fundamentais, tais como a reforma agrária, e embora tenha sido um dos mais ferrenhos opositores do seu sucessor, o socialista Salvador Allende (1970-1973), após o golpe militar se transformou em uma das principais vozes críticas do pinochetismo. Em agosto de 1980, por exemplo, fez um chamado por eleições livres e abertas em um evento conhecido como Caupolicanazo, a primeira manifestação organizada de uma oposição que começava a se refundar depois do massacre. Frei era uma figura perigosa para o regime: ao contrário dos líderes da esquerda que foram para o exílio, ele permaneceu no país e desempenhou um importante papel contra a ditadura dentro do Chile.

Na sentença de 811 páginas, o juiz madrileno condenou a 10 anos de prisão efetiva o médico Patrício Silva como autor de homicídio simples. Como coautores do mesmo crime, sentenciou a sete anos de prisão Luis Becerra –motorista de Frei e informante– e Raúl Lillo, agente civil da polícia secreta do regime. Em sua condição de cúmplice, o magistrado condenou outro médico, Pedro Valdivia, a cinco anos de prisão. Os tanatologistas Helmar Rosenberg e Sergio González, por sua vez, por terem encoberto o homicídio, deverão cumprir penas de três anos de privação de liberdade, mas não com prisão efetiva.

A decisão divulgada nesta quarta-feira está de acordo com o que Carmen Frei Ruiz-Tagle, filha do ex-presidente, reivindicava havia muitos anos: que a morte de seu pai foi um magnicídio. Parte da família de Frei nunca acreditou que sua morte, em 22 de janeiro de 1982, fora causada por complicações decorrentes de uma operação de rotina que, supostamente, não apresentava maiores riscos. A presença de agentes químicos em diferentes casos ligados às ações dos serviços de inteligência de Pinochet fez com que suspeitassem, há 20 anos, das ações de terceiros.

A Clínica Santa María já foi investigada em outros casos de grande alcance: foi nesse mesmo hospital que o escritor Pablo Neruda morreu em 1973. De acordo com a versão oficial, o poeta morreu de câncer de próstata avançado, mas, hoje –em um caso que continua aberto–, depois da exumação do cadáver, está sendo investigado se o Prêmio Nobel de fato faleceu em decorrência da doença e a presença de certas toxinas.

"Pinochet encomendou este magnicídio"

As reações da família foram imediatas. Em uma apresentação bem organizada na casa de Frei, no leste de Santiago, rodeado por parlamentares em exercício e líderes políticos como o ex-presidente Ricardo Lagos, Eduardo Frei Ruiz-Tagle disse, claramente emocionado: "Junto com a satisfação de ter alcançado um avanço substancial neste caso também nos invade um enorme sentimento de tristeza ao ficarem evidenciadas com certeza as suspeitas que sempre tivemos em relação à morte do presidente Frei".

O ex-presidente Lagos acrescentou que "a batalha para estabelecer a verdade completa do assassinato de Frei não termina aqui". "Conhecer as responsabilidades políticas será a nossa próxima tarefa (...) em particular, a participação de autoridades do Governo da época. O que foi feito não foi apenas a tarefa de alguns agentes ou alguns médicos. Há toda uma preparação que alguns descreveram como maquiavélica e criminosa."

Na sede da Democracia Cristã, no centro de Santiago, a ex-senadora Carmen Frei Ruiz-Tagle, –a mais ativa da família nos desdobramentos do caso– declarou que a sentença do juiz deixa estabelecido que seu pai "foi assassinado pela ditadura cívico-militar liderada por Augusto Pinochet". "Este é o único caso de um magnicídio na história do Chile", afirmou a ex-parlamentar chilena. "Nada que aconteceu em torno da morte do meu pai foi acidental ou o resultado do acaso."

Lagos apontou diretamente para a figura do ditador: "Augusto Pinochet é o responsável por este assassinato", disse ele, acrescentando que naquela época o Chile era um país de "mentes desequilibradas".

O presidente Sebastián Piñera também reagiu à decisão histórica. Fazendo uma pausa das férias no sul do país, condenou o ocorrido em sua conta no Twitter e gravou um vídeo: "Quero expressar minha condenação indignada de um ato tão cruel e vil, e também estender minhas profundas condolências à família do presidente Frei Montalva e especialmente a seus filhos e ao Partido Democrata Cristão (...) Estou absolutamente convencido de que a busca da verdade e da justiça é o que nos permitirá reencontrarmos e percorrer juntos os caminhos do futuro".