Escritora é a favorita do público para a cadeira deixada pelo cineasta Nelson Pereira dos Santos

É na condição de homenageada que a escritora mineira Conceição Evaristo abre, amanhã, o Livre! Festival Internacional de Literatura e Direitos Humanos, em Brasília para falar sobre o tema “(In)Visibilidades: A presença negra na prosa e na poesia brasileira”. O debate sobre o negro na literatura ocorre em paralelo com a campanha que pleiteia a presença da ex-empregada doméstica entre os imortais da Academia Brasileira de Letras (ABL), que, em 120 de história, nunca teve uma mulher negra como integrante.

Depois da criação, no último mês de maio, de uma petição online em apoio à escolha de Conceição, um dos nomes mais disputados entre os festivais literários do Brasil hoje, para ocupar a cadeira de número 7, desocupada desde a morte do cineasta Nelson Pereira do Santos, a iniciativa repercutiu na internet e, até o fechamento desta edição, já contava com mais de 21,5 mil assinaturas. A escritora entregou, em junho, a carta de apresentação, o que confirma sua candidatura à ABL.

Na entrevista a seguir, ela fala de suas aspirações e motivações no que diz respeito a integrar a Academia, expõe sua visão sobre a escrita negra feminina no Brasil, fala do espaço que as autoras negras ocupam hoje no panorama literário brasileiro e revê sua trajetória.

Por que o desejo de ocupar uma cadeira? Alguns professores, acadêmicos, pares brincaram que eu poderia ser a próxima a fazer parte da Academia Brasileira de Letras. Já há bastante tempo começou isso, mas eu nunca havia prestado atenção nessa fala. Uma radialista me ligou (para falar) sobre minha candidatura, que havia uma movimentação no Rio de Janeiro, e isso era uma proposta independente de qualquer participação minha. Foi uma resposta muito instantânea. As regras para se candidatar à ABL são: você precisa ser brasileira e ter um livro publicado. Bem, brasileira eu sou e tenho quatro livros publicados, alguns fora do Brasil, inclusive. Estou à altura para concorrer. E, também, a partir do momento que tenho uma obra reconhecida, minha candidatura é por minha trajetória, eu tenho direito e competência para concorrer.

Vemos um crescente interesse por autoras negras na atualidade. Você concorda? Se sim, a que você atribuiria essa crescente? Eu acho que a luta continua grande, porque, na verdade, o imaginário brasileiro não reconhece as mulheres negras como intelectuais, isso ainda é difícil.

Mas, aos poucos, cada uma de nós que se atina, sem perder a perspectiva coletiva, vai abrindo caminho. Temos o exemplo da Djamila (Ribeiro), que fez filosofia, e a Suely Carneiro também. Além do mais, quando nós passamos pelo caminho acadêmico, existe um encontro de saberes interessante. Existe o saber da escrita, da leitura, mas também uma tradição oral que encontra seu caminho também na prática. Uma pedagogia da oralidade.

Vemos uma conexão muito forte entre os trabalhos de autoras negras ao longo da história brasileira, desde o primeiro romance de Maria Firmina dos Reis, que é de 150 anos atrás. Você acredita que isso tem a ver com as poucas mudanças sociais e econômicas ao longo da história? Mesmo quando o estilo é diferenciado, é uma literatura que busca um referencial do negro, um discurso que constrói as personagens negras marcando sua humanidade. Normalmente, a literatura coloca os negros como objetos. Essa literatura negra, desde “Úrsula” (de Maria Firmina) parte de outra compreensão, do sujeito negro, da personagem negra, desde os séculos XIX até os dias atuais, trata-se de um discurso que busca um sujeito menos estereotipado. Se pegamos os escritos de Gregório de Matos ou “Gabriela Cravo e Canela” (de Jorge Amado), podemos perceber que são personagens construídos a partir de suas características físicas. Eu vejo nesses autores negros, desde sempre, um desejo de construção de personagens negras na sua totalidade, que tenham nuances que fujam apenas desses atributos físicos.

Você é otimista em relação ao futuro da literatura negra e feminina no Brasil? Eu sou otimista a partir, por exemplo, do próprio alcance dos meus textos. Eles sempre aparecem dentro do movimento social negro, esses sempre foram meus primeiros leitores, mas hoje tenho leitores entre mulheres brancas, homens brancos, crianças. No ano passado, eu estive em um festival em Toulouse, na França, e fiquei muito impressionada, porque tinha um grupo que tinha trabalhado com meu texto durante seis meses, e isso me deixou muito emocionada, pois é um texto que nasce de uma realidade muito específica e chega a uma cidade francesa e traz nossa humanidade e convoca a humanidade de outras pessoas. Dessa forma, vai forçando a passagem, e as pessoas que são mais sensíveis vão percebendo.

Conte-nos um pouco de sua trajetória como escritora. Eu sempre escrevi desde menina, desde nova, mas minha primeira publicação foi somente aos 44 anos, junto com um grupo de escritores afro-brasileiros. Vários foram publicados na Alemanha antes de qualquer reconhecimento no Brasil. Somente agora, recentemente, que tenho sido reconhecida pelo meu trabalho. Mas não quero ser tratada como excepcional. Espero que meu exemplo sirva para abrir espaço para autoras negras, para que elas sejam publicadas, e são essas que estão marcando a literatura brasileira, no bom sentido. Se queremos um país diverso, precisamos de uma literatura diversa. Isso vale também para a literatura indígena, que também traz uma série de questões.

Trajetória de conquistas

Conceição nasceu e viveu até a década de 70 na favela do Pindura Saia, em Belo Horizonte. Trabalhou como empregada doméstica até se mudar para o Rio de Janeiro, aos 25 anos, onde passou num concurso público para o magistério. Graduou-se em letras, é mestra em literatura brasileira pela PUC-Rio e doutora em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense. Recebeu, em 2017, o Prêmio Governo de Minas Gerais pelo conjunto de sua obra.