Por Gustavo Conde - A resistência democrática recolocou em cena um dos nossos maiores patrimônios: a música popular brasileira. Ao ouvir o cancioneiro dos anos 60, 70 e 80, temos a impressão de que esse conjunto monumental de canções e compositores fizeram um investimento político-estético sem precedentes para o futuro.
A música brasileira antecipou esse golpe violento e produziu uma resposta antecipada às suas brutalidades, arbítrios, oportunismos e artifícios variados para gerar imobilismos e retrocessos na cena social. Cada canção desta época, política ou não, é uma senha para se combater a paralisia política que tomou conta do país.
É muito curioso, porque o golpe de 2018 tornou a música popular brasileira dos anos de chumbo ainda mais forte e mais contundente, plena de sentidos de resistência e com um manancial infinito de estratégias e mobilizações catárticas através do mais humano dos nossos produtos simbólicos: a dicção da arte.
A música, no entanto, tem ainda um componente mais invasivo que a pintura, que a literatura ou mesmo que o teatro. A música instala “ritmo” no tecido social. Ela produz acelerações da ação, projeta sensações, associa a força da palavra fugaz à permanência durativa das melodias e funda um nascedouro infinito e subversivo de sentidos políticos e identitários impossíveis de serem sabotados pelo poder opressor senão pelas vias da censura.
Chama a atenção a conjunção histórica que se promoveu no Brasil no que diz respeito à canção popular. O país, naturalmente, tinha a verve e a profusão infinita de talentos e ancestralidades culturais para produzir a arte musical mais complexa e sofisticada do mundo.
Assim o fez, com todo o cancioneiro dos anos 20 e sua respectiva sequência natural que gestou, dentre outras coisas, o samba, a bossa nova e todo substrato sonoro que viabilizou os desdobramentos de gênero e estilo dos anos 50, dotando as técnicas de composição com um poder descomunal de desafiar todo e qualquer gênero musical do planeta.
A antropofagia conceitual que foi evocada quase que espontaneamente por um Oswald de Andrade, guiado pela ancestralidade europeia que se diluía fortemente mesclada às influências negras e indígenas, realmente exerceu um papel poderosíssimo na apropriação cultural brasileira do mundo global do faber artístico.
Nisso, o Brasil também foi e é singular: pode não parecer – e quando pensamos na nossa elite escravocrata, realmente não parece – mas nós temos a tendência de sermos grandes, ousados, ambiciosos. A arte brasileira carimba essa marca diante de um mundo bastante bem comportando se comparado às nossas ousadias.
Quem faria o que um modesto baiano fez com o jazz? João Gilberto simplesmente se apropriou e re-significou o jazz, a música popular americana, ao idealizar a bossa nova, trazendo para o samba a complexidade harmônica daquele gênero. Nenhum país do mundo ousou fazer isso de maneira tão espontânea.
Mais do que se apropriar, o Brasil e sua profusão de compositores altamente técnicos e dotados de raro talento de elaboração, sofisticou ainda mais o jazz, com a verve avassaladora de Tom Jobim e as derivações harmônicas de Edu Lobo e dos mineiros do Clube da Esquina.
O mundo reverencia nossa música com uma intensidade pouco conhecida aqui em solo nacional. Jazzistas consagrados, quando falam de música brasileira, prendem a respiração. Eles sabem o tipo de fenômeno estético que se desenrolou por aqui – e sabem ouvir a nossa produção musical como poucos brasileiros são capazes de ouvir.
Há de se dizer também que o Brasil teve uma indústria fonográfica importante, que deixou a sua marca e que contribuiu para a consolidação da nossa identidade musical.
O Brasil foi um dos poucos países do mundo que não foi tomado pela música americana de maneira arrasadora com a expansão e popularização do cinema de Hollywood. O Brasil absorveu a influência do cancioneiro americano, mas também resistiu a ela, fazendo frente nas execuções em rádio e estabelecendo uma identidade poderosa nos anos 40 e 50.
Os americanos não se lançaram a boicotar essa nossa tendência a grandiosidade e à autoestima musical. Por sorte - ou por outras razões - no terreno na canção, o Brasil jamais foi subserviente ou secundário. Ele influenciou o mundo e se impôs de maneira irresistível a arrebatadora.
A canção, a letra
Gilberto Gil é um desses produtos da imensidão estética de nossa cultura de música popular. É um compositor virtuoso que lida com letra e melodia de maneira muito peculiar e filosófica. É um agente político full time, um agregador, um catalizador, um irradiador de resistência humana, de combate ao preconceito, de produção de desdobramentos subjetivos, de ousadias estéticas, de diálogos múltiplos com toda a cultura mundial, do cinema à pintura, das tecnoclogias ao experimentalismo, do romance e da tradição às eletrificações sonoras, plenas de sentido e consequência.
Gil tem uma biografia igualmente poderosa. De Salvador, dos festivais da canção, da resistência, das metáforas, do exílio, da parceria com outro gigante chamado Caetano Veloso, do retorno ao país, da insistência na democracia, da atenção à cena pop internacional, a antropofagização de toda essa cena, do equilíbrio entre a mais profunda tradição (o baião, o xaxado, o samba, a bossa) e a mais contemporânea das linguagens (o reggae, o funk, o ska, o rock). Gil é continente, outro nessa imensa Pangea que é a música popular brasileira.
O compositor baiano ainda usufrui de uma especial virtuosidade com a palavra. Não bastasse a densidade conceitual que sua ancestralidade negra impõe à música que faz, seu manejo linguístico é de intimidar os maiores letristas-ourives da cena mundial. Vejamos uma canção seminal, de 1982, Metáfora:
Uma lata existe para conter algo
Mas quando o poeta diz: "Lata"
Pode estar querendo dizer o incontível
Aqui o enunciador cancional estabelece uma das cenas mais delicadas que a semiótica da canção pode rastrear. Liga a palavra à coisa para iniciar um percurso narrativo rumo ao tecido caudaloso da linguagem humana.
A “lata” é um objeto que tem sua função social, mas é também uma palavra para o gesto simbólico do poeta – que é o próprio Gil e seu desdobramento cancional. O Gil compositor cinde as duas dimensões de “lata” e dá início a uma busca não passional, do ponto de vista clássico, mas uma busca estética, levemente agônica e filosófica, que visa o re-encontro entre a palavra e a coisa, com todos os seus corolários e subjacências.
O poeta, portanto, de posse de seu uso consagrado da linguagem que lhe pertence e que lhe identifica como ser simbólico, pode se apropriar da palavra “lata”, de seu som, de sua duração, de sua sincronicidade, na busca pela significação de seu exado contrário: o incontível. É um cifra muito poderosa e sofisticada de construção de sentido cancional.
Ela introduz um conjunto de desdobramentos ainda mais complexos que vão conduzir o ouvinte, co-enunciador da canção, aos limites do que pode produzir a nossa máquina simbólica de recortes de sentido. Gil é também uma espécie de linguista, de semioticista, que teoriza sobre sua condição de criador. O trecho seguinte faz a derivação rumo ao infinito tímico e cíclico, característico da canção popular:
Uma meta existe para ser um alvo
Mas quando o poeta diz: "Meta"
Pode estar querendo dizer o inatingível
Aqui, Gil evoca a palavra “meta”, como porção cirúrgica de metáfora, mas apartada de sua significação etimológica. “Meta” é o que é, do ponto de vista social-coletivo do português brasileiro: um alvo, um objetivo. No gesto poético, no entanto, ela não precisa ser aquilo que aparentemente é.
É interessante fazermos uma breve analogia histórica e linguística. Gil poderia muito bem responder com esta canção aos detratores de Dilma Rousseff, quando esta proferiu a célebre frase da “meta”. Ela dizia: “quando a gente cumprir a meta, a gente vai dobrar a meta”. Um enunciado muito simples de codificar, quase básico. As “metas” de Dilma não se equivalem ao longo da frase.
Uma é uma “meta” anterior, outra é “posterior”. São distantes no tempo. Quem se aventurou a fazer a equivalência entre as “metas” de Dilma, numa operação claramente de má vontade e fraudulenta – para não dizer, doentia ou precária – deparou-se com a própria limitação técnica diante de enunciados básicos do português.
Isso mostra que a linguagem poética não pertence exclusivamente ao poeta profissional, mas pertence a todo o tecido social. A poesia está presente no mecanismo metafórico que é o que alimenta a linguagem humana desde sempre. A frase da ex-presidente Dilma é absolutamente correta e plena de sentido e, mais que isso, delicadamente poética e sofisticada. Não se pode interpretá-la com um instrumental rudimentar, como a própria Dilma, profunda conhecedora de literatura e música, costumava dizer a seus assessores mais afoitos.
Feito o parêntese, voltemos à “Metáfora”:
Por isso, não se meta
a exigir do poeta
Que determine
o conteúdo em sua lata
Na lata do poeta tudo nada cabe
Pois ao poeta cabe fazer
Com que na lata venha caber
O incabível
Como um recado de antecipação aos limitados leitores que não compreenderam a “meta” de Dilma, o eu cancional adverte: não se meta a exigir que o conteúdo da lata seja pré determinado. Isso é um tratado de interpretação de texto. Não se pode limitar o discurso do outro às suas próprias fobias e paranoias. Para que o espetáculo da linguagem aconteça é preciso que haja cooperação – isso está em Paul Grice, um filósofo da linguagem britânico que formulou as leis de cooperação do discurso que, por sua vez, fundou a teoria pragmática dos estudos da linguagem.
Gil arremata sua navegação simbólica-passional com uma sutileza: ele perfaz o seguinte verso “pois ao poeta cabe fazer”, trazendo o verbo caber para sua acepção performativa e auxiliar – e, consequentemente, metafórica. “Ao poeta cabe”. O conteúdo da lata também é um conteúdo espiritual-simbólico. E a “lata” do poeta é o seu próprio corpo.
Essas conexões e dispersões de sentido tecem uma malha cancional, atrelada à sua extensão melódica, com extrema coesão e unidade. O ouvinte da canção é levado a re-costurar todo o caminho feito pelo compositor e extrai dessa re-costura sua fruição estética, plena de passionalidade.
Isso também é resistência democrática. Isso também é profundamente político. Isso também é estar atento ao sentido social da coletividade. Porque a linguagem é feita de história e subjetividades, de singularidades e pactuações de sentido. Essa tarefa de colocar em uma canção uma senha para que se construa e se perfaça uma interpretação consistente e dentro de uma concepção humanista e gregária, é uma tarefa de alto teor político.
Em “Metáfora”, Gilberto Gil nos concede uma experiência cancional de profunda passionalidade (pois o eu cancional está dividido entre o uso da palavra e sua significação social, bem como da explicação dessa cisão), de profunda beleza (uma melodia sem refrão que acelera seus sentidos de maneira contínua e uniforme, fragmentando-se na pronúncia compassada da palavra “metáfora” que lhe serve de fio narrativo temático) e de profundo sentido político (a necessidade de se escutar o outro e de ser cooperativo com suas proposições simbólicas).
Há ainda um detalhe muito significativo. A nota inicial de Metáfora é um Lá com sétima maior, somado a uma quinta aumentada [A7M(5+)]. Isso dá uma sensação auditiva de incompletude. É uma nota de transição, rarissimamente usada para iniciar um movimento harmônico.
O compositor russo Igor Stravinsky faz isso na “Sagração da Primavera” de 1913. Sua frase melódica inicial é uma frase incompleta, perturbadora, que coloca o fagotista (que abre sozinho o movimento inicial) numa posição desconfortante (pois a nota é também muito aguda para uma fagote).
Gil, portanto, tem um domínio conceitual do conjunto letra / melodia muito preciso e se utiliza desse virtuosismo quase filosófico como um desdobramento de sua própria linguagem de cancioneiro popular.
A nota incompleta marca a incompletude da própria linguagem, o sentido que falta à palavra “lata” quando enunciada por um poeta. A metáfora é o elo de ligação que vai restituir esse sentido como a nota seguinte fará: um Lá com sexta [A6], uma nota mais “solar” e mais “agradável” ao ouvido humano, uma nota de “resolução”.
Gil, portanto, é extremamente popular, mas tem profundo domínio intuitivo das técnicas compositoras. Ele representa a mais delicada matriz de composição cancional associada à sua humanidade enquanto agente político investido de gesto revolucionário e poético. Gil é patrimônio brasileiro.