Debochar da infelicidade dos ricos está na corrente sanguínea da cultura neste momento. É o Zeitgeist (termo alemão que descreve “o espírito do tempo”), comprovado pelo sucesso de crítica de séries como "Succession" e “White Lotus”, da HBO, e do filme “Triângulo da Tristeza”, vencedor da Palma de Ouro em Cannes e indicado ao Oscar. Mas a conversa se torna mais complexa quando o desdém deixa de focar na ficção e lança o olhar para a vida real. É o que ocorreu desde que a notícia sobre o desaparecimento de milionários no submarino Titan, que buscavam os destroços do Titanic no Oceano Atlântico, correu o mundo. Mesmo após a informação de que todos os tripulantes do submersível morreram, talvez de forma dolorosa, comentários desdenhando sobre eles varreram a internet. Nessa história, aonde fica a empatia? E ela é necessária?

Em incontáveis comentários e tuítes, não faltam pessoas apontando que os milionários gastaram uma fortuna “por vaidade”, e a contagem regressiva para o fim do estoque de oxigênio do submarino se tornou, para alguns, uma piada. Até Luciano Huck, ele próprio milionário, criticou a decisão dos tripulantes, quando foi entrevistado no podcast PodPah. “Fico imaginando como o idiota paga 250 mil dólares para entrar naquela lata de sardinha. Para ver um navio que matou mais de mil pessoas. Não tem como aquela energia ser boa. Você vai ver o Titanic lá embaixo, que matou um monte de gente? Vai ver o filme, cara. [...] É sobre até onde vai a vaidade humana", declarou o apresentador.

Desde 2020, a fatia 1% mais rica do mundo concentrou quase dois terços de toda a riqueza do planeta, cerca de 42 trilhões de dólares, de acordo com a organização Oxfam, que estuda a pobreza no globo. Nesse contexto, em meio às notícias sobre a morte dos bilionários, também entra a revolta sobre a desigualdade. Para a psicóloga clínica e facilitadora de comunicação não violenta Bruna Perillo, é possível ter empatia pela tragédia dos tripulantes, que morreram na implosão do submarino e cujos corpos talvez nunca sejam encontrados no fundo do oceano. Mas isso não apaga o abismo social que existe entre eles e a maioria dos comentaristas da internet — e da população mundial. 

“Quando a minha dor é muito grande, preciso primeiro ter empatia com essa dor. Quando tem um espaço de revolta, de tristeza, de discordância com o movimento da viagem, quando o julgamento está presente, não tem como oferecer empatia ao outro sem me oferecer empatia e cuidar dos meus sentimentos primeiro”, pontua Perillo.

O ininterrupto feed de piadas sobre a implosão do submarino também pode ser entendido como schadenfreude. Esse termo alemão descreve o prazer em assistir ao infortúnio de outras pessoas. Ele foi citado em uma entrevista da professora de mídia da Universidade do Estado da Pensilvânia Jessica Myrick ao canal norte-americano “NBC News”. No caso no Titan, ela avalia que a visão “de pessoas ricas fazendo uma viagem perigosa no que parece uma lata só pela diversão e só porque podiam desperta alguma ‘schadenfreude’ em pessoas que nunca poderiam pagar por isso e que provavelmente não pagariam nem se pudessem”.

O deleite com o sofrimento da classe dominante não é novidade na história — e também não é a primeira vez que envolve circunstâncias medonhas. É famoso um texto do historiador cultural norte-americano Robert Darnton sobre o “grande massacre dos gatos”. Ele descreve uma gráfica do século 18 na França, em que os trabalhadores eram explorados pelos patrões e, por vingança, matam o gato da patroa e reencenam o ato uns para os outros com extrema zombaria. É um contexto, claro, que guarda muitas diferenças do ambiente online de três séculos depois.  

Os passageiros do submarino incluíam um pesquisador de arqueologia marítima, um dos diretores da OceanGate, empresa que organizou a viagem, um magnata britânico do ramo de aviação, um empresário paquistanês milionário e seu filho de 19 anos, que estudava economia e estava com medo de embarcar.

Alguns comentários pela internet destacaram que outra tragédia nos oceanos parece ter causado menos comoção nos últimos dias: o naufrágio de um barco de migrantes rumo à Europa, que matou pelo menos 82 pessoas e deixou centenas de desaparecidos. No Twitter, uma série de postagens defendem que é hipocrisia focar em uma tragédia e não em outra; tantos outros argumentam que são eventos sem relação direta e que comemorar a morte dos tripulantes do navio não é luta de classe, mas, sim, crueldade.

Os dois acontecimentos são trágicos, sublinha Bruna Perillo. A implosão do submarino chamou atenção pelo seu ineditismo e pela conexão com o Titanic. Mas também é um fenômeno histórico que a tragédia dos mais ricos se popularize, reflete a psicóloga. “Por que focamos tanto na história de poucos ricos? Essa é uma pergunta que me perturba, porque, historicamente, fazemos isso. Culturalmente, temos um condicionamento a colocar algumas pessoas, por sua posição social e financeira, no topo, em uma hierarquia que faz com que elas talvez mereçam mais. Aonde aprendemos isso? Não sei se tenho resposta para essa pergunta”, conclui.