DE VOLTA AO PASSADO'
Texto produzido por: Alex Tajra
“Voltamos a ter exatamente a falta de uniformização. Hoje nós temos a terceira maior população carcerária do mundo: 852 mil presos. A gente só perde para os Estados Unidos e a China. Continua tendo mistura de preso preventivo com preso definitivo. E ainda tem o PCC, e a gente acaba funcionando como recursos humanos deles. Joga o cara lá dentro, esquece a chave.”
O magistrado defende que, ao invés de atacar as ferramentas que funcionam, como as saídas temporárias, seria melhor pensar no principal problema do sistema prisional, que é o retorno da pessoa presa à sociedade. “A tecnologia hoje permite ao cara fazer um curso de técnico. Essa deveria ser a discussão. Os riscos de fuga e de reincidência, que são criticados por quem é contra as saidinhas, são justamente o que a gente evita com um tratamento de educação, de capacitação profissional.”
O desembargador Henrique Abi-Ackel
Spacca
Leia a seguir a entrevista:
ConJur — Como foi possível criar as saídas temporárias da prisão durante a ditadura militar?
Henrique Abi-Ackel — Em 1975, houve uma CPI que analisou o sistema carcerário brasileiro. Meu avô foi o relator. Eles fizeram várias inspeções e a conclusão principal foi a do hiato legislativo que existia. A superlotação carcerária e qualquer questão de reintegração eram tratadas de maneira totalmente diferente em cada local. Assim, a ideia principal da Lei de Execução Penal foi unificar cientificamente (as normas) em uma legislação própria. Foi feita uma imersão doutrinária em outros países e uma das conclusões a que se chegou foi a necessidade de uma progressão na execução penal, justamente para poder obedecer e atingir o objetivo de ressocialização. E a saída temporária foi um desses objetivos de estimular o convívio fora do ambiente prisional. Não é possível para o preso se ressocializar estando encarcerado absolutamente todo o tempo.
ConJur — Esse instituto cumpre a sua função?
Henrique Abi-Ackel — Na Secretaria de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais, nós temos uma taxa de evasão de 3%. A taxa de retorno dos presos é de, na pior das hipóteses, 96%. A maioria absoluta dos presos retorna. O preso que convive com a sua própria família ou exerce alguma atividade fora do ambiente prisional passa a ter esperança. Ele passa a ter uma condição melhor e diminui a reincidência. Isso é muito óbvio, tanto é que ele volta em grande maioria. Ou seja, eu entendo que cumpre a sua função de reintegração social.
ConJur — Dentro da Lei de Execução Penal existe algum mecanismo que poderia ser alterado para facilitar a ressocialização?
Henrique Abi-Ackel — As situações que eu acho que poderiam ser discutidas, mas não têm apelo porque o que a população quer, em geral, é o enrijecimento, são aquelas relativas a trabalho, educação e capacitação profissional. Até a questão, por exemplo, de incentivos fiscais para alguém que contrata (o egresso). Um tratamento pós-penal. Só que isso acaba não tendo apelo. A tecnologia hoje permite ao cara fazer um curso de técnico. Essa deveria ser a discussão. Os riscos de fuga e de reincidência, que são criticados por quem é contra as saidinhas, são justamente o que a gente evita com um tratamento de educação, de capacitação profissional, de uma certa humanização.
ConJur — A norma aprovada recentemente pelo Congresso contém o retorno do exame criminológico para a progressão de regime. Sua aplicação é viável?
Henrique Abi-Ackel — É completamente impossível. O meu avô foi relator de uma lei que alterou a LEP em 2001. E ele tem uma frase: “Hoje, cumprindo um sexto da pena, o prisioneiro tem de se submeter a um exame que não se realiza nunca”. E é verdade. É uma medida muito mais punitiva do que reabilitadora, e ela sobrecarrega o sistema com uma demanda impossível de cobrir. No final das contas, o Estado não dá conta de realizar esse exame, e é um exame em que em um ou outro caso será detectada uma situação que demande uma atenção diferenciada, mas na maioria das vezes ele simplesmente vai ser burocrático, criando simplesmente um passo a mais antes de qualquer obtenção de benefício.
ConJur — A lei das saídas temporárias foi aprovada em um contexto de decadência da ditadura. Por que, 40 anos depois, voltamos a uma discussão que já parecia superada?
Henrique Abi-Ackel — São contextos bem diferentes. Meu avô acabou participando do governo e ajudando porque ele era um conciliador. Ele foi chamado justamente para estabelecer esse diálogo que era necessário para uma abertura. Ele era ouvido pelos dois setores, tinha um trânsito muito bom e sempre teve uma formação jurídica muito humanista. Hoje em dia, vejo que, como está tudo muito polarizado, há uma instrumentalização muito forte das questões. Por exemplo: quando um defende aumentar a pena de alguma coisa, o outro vai defender a diminuição; quando um defende enrijecer a questão da saída temporária, o outro defende o contrário. Então existe um pouco dessa instrumentalização das ferramentas jurídicas.
Tenho para mim o seguinte: essa questão do endurecimento penal não tem muito endereço, está presente em todo o espectro ideológico, sabe? De esquerda, direita… A gente tem uma sensação de insegurança, não é? É a comunicação, a mídia social, a ideia do (gênero) true crime, que a gente assiste em séries de televisão. A violência vende bem, tem apelo popular.
ConJur — Mas é uma pauta custosa para a esquerda…
Henrique Abi-Ackel — É uma pauta que vende bem para qualquer pessoa, não é? Essa é que é a verdade. Só que a gente tem de lembrar que a população precisa participar do debate, mas as vítimas também. Não é simplesmente agradar à população — e esse é o grande problema da política criminal hoje, que envolve a política carcerária como política pública. O Direito Penal e a execução penal acabaram virando a panaceia de todos os males. A gente não trabalha com política de educação, com política de saúde — a gente vai direto na política criminal, porque ela vende. E ela vende no endurecimento, não na flexibilização. Então a gente lança mão dela a bel-prazer e acaba se deparando com legislação simbólica, leis com nomes próprios.
ConJur — E isso gera, de alguma forma, identificação da população com a lei punitivista aprovada pelo Congresso…
Henrique Abi-Ackel — A gente tem de desconfiar (dessas medidas). Crime é um negócio que sempre vai existir. Não tem jeito. E, basicamente, esse tipo de legislação é assim, o objetivo dela é sempre acabar com determinado crime, acabar com a fuga na saída temporária. E não vai acabar. É impossível a gente chegar a um índice de zero (fugas), não tem jeito. A gente tem de ter consciência de que não adianta fazer uma norma que vai devolver o preso de uma forma muito pior à sociedade.
ConJur — O senhor acredita que manter o réu encarcerado por mais tempo vai piorar a influência das facções criminosas na vida dele?
Henrique Abi-Ackel — A gente tem de fazer um mea culpa, toda a sociedade, porque durante muito tempo a sociedade negou a existência do PCC. Não podia falar a sigla PCC que estava errado. Facção é uma coisa que é realidade, e a gente tem de enfrentar. E aí tem um problema, porque elas são comandadas de dentro da cadeia e o cara entra lá, ele não tem perspectiva de vida, ele vai ficar lá encarcerado. A gente tem uma mistura do preso preventivo, do provisório geral, com o preso em pena. No final das contas, são as mesmas conclusões da CPI de 1975. Em grande parte, a gente continua tendo os mesmos problemas.
ConJur — Essa nova lei contém uma lacuna em relação ao prazo das saídas temporárias. Como o senhor acha que esse vazio vai ser preenchido?
Henrique Abi-Ackel — Essa lacuna vai criar a situação en que cada juiz vai decidir de uma forma diferente. Voltamos a ter exatamente a falta de uniformização. Hoje, nós temos a terceira maior população carcerária do mundo: 852 mil presos. A gente só perde para os Estados Unidos e a China. Continua tendo mistura de preso preventivo com preso definitivo. E ainda tem o PCC, e a gente acaba funcionando como recursos humanos deles. Joga o cara lá dentro, esquece a chave. É claro que ele vai (para o crime organizado), porque ele não tem perspectiva.
ConJur — Qual é o maior problema da ressocialização atualmente no Brasil?
Henrique Abi-Ackel — Eu acho que o maior problema, o maior gargalo, é o tratamento pós-penal. É o tratamento do egresso. Porque o cara é colocado em liberdade, entrega a trouxinha de roupa com a qual ele entrou — às vezes nem é a mesma roupa —, entregam uma roupa para ele, ele é colocado dentro de um ônibus e tchau. Eu não estou dizendo que eu sei exatamente o que tem de ser feito, mas alguma coisa tem de ser feita. Seja durante o cumprimento da pena com um trabalho educacional, com talvez um incentivo fiscal para uma empresa ter uma produção industrial em algum lugar. O maior gargalo é esse. E isso, de certa forma, a saída temporária, em alguns momentos, amenizava, porque o cara podia fazer um curso, podia ter a convivência familiar. Agora a gente está dando um passo atrás.
ConJur — O senhor acredita que há dispositivos na LEP que não tiveram eficácia, como o das colônias penais, ou que não foram colocados em prática e que poderiam ajudar?
Henrique Abi-Ackel — O problema é o seguinte: o que dá mais voto? Dá mais voto criar um endurecimento punitivo, tirar direito de preso. Quando se tira direito do criminoso, a sociedade, que se sente identificada com a vítima, sente que está tendo ganho de direito. Então isso vende mais para a população do que construir uma colônia penal. Construir uma colônia penal vai demandar dinheiro, não vai agradar à população do local, então ela só tem desvantagens do ponto de vista imediatista.
ConJur — O conflito entre os poderes, essa ideia de “mandar recado”, como tem acontecido com o Congresso e o Supremo Tribunal Federal, prejudica o debate?
Henrique Abi-Ackel — Sem dúvida, até porque o recado que se dá não é um recado necessariamente técnico, e a gente está falando de uma política pública que tem de ser técnica. Veja por exemplo a questão da PEC das Drogas. Está se propondo colocar no artigo 5º da Constituição, como conteúdo programático de política criminal, o combate à droga, como se combater as drogas fosse o objetivo da República Federativa do Brasil. Isso prejudica muito porque quando a gente precisa ter um debate técnico e há uma briga entre poderes, a técnica fica completamente de lado. (O debate) Acaba instrumentalizando os dramas da população que precisa ser atendida.
Fonte: CONJUR