Amauri Meireles (*)

 

A violência da criminalidade tem sido assunto recorrente na mídia, em reuniões sociais, em sessões políticas, em encontros de familiares, quase sempre revestidos de elevada dose de revolta e acentuada indignação.

É que, no Brasil, essa violência teria alcançado patamares de insegurança socialmente intoleráveis, trazendo angústias, inquietação, mudança de hábitos, enfim, deteriorando nossa qualidade de vida.

Em paralelo, o governo mostra que os números da violência criminal estão caindo. Como explicar tal paradoxo, considerando-se ambos os fatos como verdadeiros?

De início, é bom esclarecer que, sob nossa óptica, cada localidade, bairro, cidade, estado, país tem um específico patamar, um nível tolerável de insegurança. Isso porque, conforme já se escreveu, cada local, próximo ou longínquo, é uma realidade cultural distinta.

Além do mais, a segurança, conceituada como um ambiente, é uma utopia. Vive-se e sempre se viveu em um ambiente de insegurança, em qualquer parte do mundo, em razão do inopinado, do imprevisível e do imponderável inerentes às vulnerabilidades e às ameaças sociais, peculiares a cada local, que afetam a preservação da vida e a perpetuação da espécie humana.

Dessa forma, há uma aceitação tácita de que a blindagem de proteção do corpo social tem vulnerabilidades, por onde as ameaças penetram, atacam e afetam o organismo social, conforme certa previsibilidade tida como inexorável, resultante de peculiares vetores políticos, econômicos e socioculturais.

Em nosso país, a maior ameaça, a atual matriz de insegurança é a violência, particularmente a da criminalidade. A origem da questão estaria na historicamente inadequada atenção e na deficiente intervenção governamental em questões relativas a causas e efeitos desse fenômeno social, o que, em si, se constitui em uma enorme vulnerabilidade.

O que deveria ser um Sistema de Defesa Social não passa de um amontoado de órgãos, realizando, compartimentadamente, ora trabalhos específicos de salvaguarda social (que nos foram legados como sendo, inapropriadamente, de segurança pública), ora atividades de inteiração (isso, inteiração com “i”, completude) social.

Secretarias de Estado, responsáveis por essa inteireza social, através do poder de polícia administrativa que detêm, não enxergam o contexto em que se inserem e, portanto, não têm consciência da responsabilidade de também participar da mitigação de causas e efeitos da violência. Isso ocorre, ainda, pela falta de coordenação e controle (que, indiretamente, poderia propor metas e cobrar resultados). Por fim e principalmente, falta reciprocidade, porque, em alguns locais, essas secretarias compõem figurativamente esse pseudossistema, dificultando a interação (entrosamento).

De outro, as Polícias, Militar (ostensiva) e Civil (investigativa), atuando na causalidade, isto é, onde os fatos acontecem, trabalham para conter o fluxo de causas e o refluxo de efeitos, mas não têm controle sobre os fatores geradores de violência. Deles, residualmente, conhecem a incidência, a freqüência, a extensão e a profundidade, informações que se perdem pela distribuição estanque dos órgãos de Defesa Social.

Objetivamente, essas polícias têm produzido bons resultados, porém, subjetivamente, seus desempenhos são considerados insuficientes para minimizar a sensação de insegurança na população, em razão de a população não saber, não ter a percepção de que esses órgãos não atuam sobre causas e efeitos da violência.

Constata-se, mais uma vez, a inobservância de uma política pública, de Estado, para enfrentar e dominar a violência, que preveja, determine e oriente ações sistêmicas, sinérgicas, sincrônicas, sintônicas e simultâneas, com efetividade.

As causas que estão a merecer atenção prioritária, dentre outras, sem dúvida, são:

- Menores em situação de risco (inclusive sendo cooptados); conluio de segmentos estatais e empresariais com a geração de ameaças (corrupção);

- Desrespeito aos valores civilizatórios e desobediência às regras sociais; sensação de impunidade (visão popular, com ênfase se vítima);

- Falta de interação no conjunto (que jamais pode ser chamado de Sistema) dos órgãos policiais e de racionalização em procedimentos rotineiros;

- Distopia estatal (inexistência ou funcionamento anômalo de serviços públicos de qualidade, tais que educação, saneamento, iluminação, assistência);

- Gravíssima desimportância dada ao trabalho socioeducativo (nos CRAS e em entidades de atendimento, previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA);

- Ilusão de isotopia (sensação de que se está em um lugar onde está ocorrendo uma ameaça ou de que essa ameaça logo chegará onde se está);

- Desatenção com a execução penal administrativa conhecida, por impróprios nomes, como sistema penitenciário, carcerário, prisional (e os estabelecimentos penais à beira de explodir).

Em relação aos efeitos, minimamente, entende-se que são:

- Considerável elevação do número de menores em conflito com a lei;

- Aumento nas categorias de ameaças: riscos, perigos, medos, receios;

- Impunidade (visão da vítima e da população em geral), o que gera desconforto, desconfiança;

- Impunição (visão de infrator), o que aumenta sua ousadia;

- Graves prejuízos à tradição (países com tradição de serem cultos e ordeiros, começam a ter inusitadas e preocupantes taxas e tipicidade de crime);

- Aumento na sensação de INSEGURANÇA.

No Brasil, durante anos, governantes investiram muito pouco na contenção criminal e, paralelamente, prevalecia o equívoco de que as duas polícias – Militar e Civil – eram responsáveis pela aceleração da espiral da violência, por incompetência técnico-profissional. Mais tarde, identificou-se que o aumento da violência era menos um problema policial que um grave e complexo problema decorrente de uma vulnerabilidade socioeconômica – visível nas crises de moradia, transporte, saúde, educação e alimentação – que surgiu nas metrópoles, em decorrência do êxodo rural, no início da década de 70.

O inchaço das grandes cidades tumultuou a operacionalização de direitos sociais, contribuindo para que certos marginalizados migrassem para a marginalidade.

Com a implantação de programas oficiais de inclusão social, após o Estado reconhecer e assumir sua condição de protagonista na responsabilidade pelo preenchimento de necessidades/direitos sociais, os números da marginalização, com ênfase para a pobreza e a miséria, tendem a cair, mas a sensação de insegurança ainda é alta.

Possivelmente porque, à medida que a vulnerabilidade socioeconômica se reduz, constata-se crescimento da vulnerabilidade sociopolítica, visível em várias situações e em cenas frequentes.

Por exemplo, é o caso de milhões de brasileiros exigindo direitos sociais e, simultaneamente, não praticando deveres sociais ao não respeitarem valores sociais e/ou ao não obedecerem às regras sociais.

Ainda, quando menores em situação de risco cometem atos infracionais, atemorizando a população, que, descrente de medidas de correção efetivas, não registra as ocorrências, criando uma cifra negra, que não é contabilizada objetivamente no grau de insegurança, mas, subjetivamente, eleva o clima de insegurança.

Também, quando se constata que a espiral da violência está sendo retroalimentada de dentro de estabelecimentos penais, não por falta de profissionalização da administração penal ou de profissionalismo de seus integrantes, mas por anacronismos logísticos, administrativos, tecnológicos (e propostas sindicais efetivas não têm tido respaldo oficial).

É de se reconhecer que, atualmente, os Estados estão investindo nos órgãos de salvaguarda social (chamados, até então, de órgãos de segurança pública) não no volume e forma desejáveis, mas, admite-se, é um avanço.

Entretanto, em virtude de idêntico procedimento não estar sendo adotado, simultaneamente, em relação à inclusão social (menores, excluídos sociais – que não é fato determinante, mas pode vir a ser um componente – administração penal, etc.), corre-se o risco de todo esse investimento e os resultados obtidos na causalidade “irem para o ralo”.

É que o volume de mazelas sociais, produzido pelo fluxo de causas e pelo refluxo dos efeitos, vem aumentando gradativamente na causalidade e a exigência atual (equivocada, aliás) é de que, minimamente, na mesma intensidade, haja mais e modernos investimentos no vértice de causas e efeitos, em razão de elas aumentarem e, assim, sucessivamente.

Significa dizer que, se o caudal de causas e efeitos da violência não for contido, os investimentos na causalidade jamais serão suficientes para encher “o tonel das Danaides”.

Até quando vamos suportar isso? Até que a cidadania plena se instale em nosso país; o caráter nacional volte a ser motivo de orgulho nacional; os direitos sejam reivindicados e obtidos na mesma proporção que os deveres sejam praticados (e isso, sem dúvida, é questão de Educação); até que nossas crianças sejam efetivamente protegidas, reduzindo drasticamente a estatística de menores em situação de risco; que o Estado se aparelhe para corrigir o hiato existente entre a concepção de responsabilidade familiar de ontem e a impossibilidade de cumprimento total pela família de hoje; que o Estado dê efetividade à assistência social, instrumentalizando (pessoal e logística) os centros de referência e dando autoridade aos agentes socioeducativos; até que a reinserção social, através reintegração de apenados, de marginais, tenha diretrizes objetivas, planos exequíveis e resultados efetivos, a exemplo do que ocorre com a outra vertente da reinserção social, a reintegração de excluídos sociais, de marginalizados.

Minas Gerais teve tudo para sair na frente. Na Constituição Estadual de 89, foi criado o Conselho Estadual de Defesa Social, presidido pelo vice-governador, responsável pela elaboração de políticas públicas para essa área. Está no papel!...

Corretamente, fundiu a Secretaria de Segurança com a Secretaria de Justiça, embora com o incorreto nome de Secretaria de Defesa Social, porque não realiza a inteiração social, somente a coordenação da salvaguarda social.

Atualmente temos Secretaria de Justiça e Segurança Pública (menos mal).

O sadomasoquismo é exceção na sociedade. Em governos, será uma regra? Ou não conhecem necessidades sociais, por ambliopia (olho preguiçoso) social? Ou é incompetência mesmo?        

                                               (*) Coronel Veterano da PMMG

                                               Foi Comandante da Região Metropolitana de BH