O esforço do governo no sentido de desverticalizar o mercado de gás é notório, e muito já se falou sobre o que é necessário para que isto ocorra. Mas podemos esperar algo no curto prazo para vivenciarmos a livre concorrência? Nesse sentido, podemos elencar alguns fatores com importante papel nesse processo.

A resolução do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) nº16-2019, publicada em junho de 2019, estabelece diretrizes e aperfeiçoamentos de políticas energéticas voltadas para promoção da livre concorrência no mercado de gás natural.

Já o Termo de Compromisso de Cessação (TCC) celebrado entre a Petrobras e o Cade em julho de 2019, quando a estatal se comprometeu a vender a participação nas transportadoras NTS (10%), TAG (10%) e TBG (51%), e também alienar a participação acionária indireta em companhias distribuidoras, dentre outros comprometimentos relevantes.

Analisando os documentos conjuntamente, podemos destacar os seguintes pontos: A resolução da CNPE indica a necessidade do estabelecimento de regras claras para o acesso negociado e não discriminatório às infraestruturas de escoamento e processamento de gás natural e aos Terminais de Gás Natural Liquefeito (GNL) que são controladas hoje pela Petrobras.


Nesse processo, é importante que a mesma disponibilize informações ao mercado sobre as condições gerais de acesso a terceiros a essas instalações. De acordo com o TCC, a Petrobras se compromete a fazer isso, e tais informações são esperadas no início deste ano.

A resolução da CNPE reforça a necessidade de o agente dominante, a Petrobras, adotar medidas estruturais e operacionais, definindo as demandas no sistema de transporte e possibilitando a oferta de serviços de transporte na capacidade remanescente e promovendo a remoção de barreiras para que os próprios agentes produtores comercializem o gás que produzem.

Pelo TCC, a estatal se comprometeu a indicar nos sistemas de transporte quais são os volumes de injeção e retirada máxima em cada ponto de recebimento e zona de entrega. Além disso, deverá adequar, em até 90 dias contados a partir da assinatura do acordo, os contratos vigentes para prestação de serviço de transporte, de modo que os transportadores TAG, NTS e TBG possam ofertar a capacidade remanescente ao mercado, e também se comprometeu a não contratar novos volumes de gás natural, de parceiros ou terceiros, a partir da data de assinatura do Termo. Importante salientar que as demandas para a utilização do sistema de transporte já foram informadas aos transportadores.

Um outro documento de relevância nesse contexto é o Decreto nº 9.616/2018, do governo federal, que altera o Decreto nº 7.382/10, que regulamenta as atividades de tratamento, processamento, estocagem, liquefação, regaseificação e comercialização de gás natural.

Dentre várias orientações, estabelece que os serviços de transporte de gás natural serão oferecidos no regime de contratação de capacidade por Entrada e Saída (E/S), e não mais de ponto a ponto. Isso significa que a comercialização pode ser feita entre dois agentes mesmo que não haja um ponto físico em comum, bastando que o operador garanta que o gás será entregue em uma entrada ou retirado em uma das saídas da malha de transporte.

Nesse sentido, a TBG, proprietária do gasoduto Bolívia-Brasil (Gasbol), já está com uma chamada pública em andamento realizando a primeira oferta de capacidade no regime de E/S, para a contratação de 18 milhões de metros cúbicos diários, de uma capacidade total de 30 milhões de metros cúbicos.

Devido ao regime de E/S, a resolução da CNPE reitera a necessidade de coordenação da operação do sistema de transporte pelos transportadores independentes por meio da criação de regras que determinem de que forma o acesso à malha de transporte é disponibilizado para os produtores, os chamados códigos comuns de rede.

Após conversas com agentes relevantes do mercado, entende-se que os transportadores independentes já estão trabalhando no desenvolvimento desses códigos, os quais deverão ser regulamentados pela Agência Nacional de Petróleo (ANP).

Ainda falando do regime de E/S, este tem por premissa a possibilidade de contratações independentes da Entrada e da Saída por múltiplos agentes, o que está inconsistente com a legislação atual do ICMS para o transporte de gás natural vigente até então, que considera o fluxo físico efetivamente percorrido pelo gás natural, o que só é possível no caso de termos um único carregador, que é o caso atual. Dessa forma, o Ajuste Sinief 17/2019, publicado em outubro, faz esta correção, adequando a legislação de forma pertinente.

Outro fato relevante foi o anúncio recente pela ANP de que a Petrobras vai licitar o volume de 10 dos 18 milhões de metros cúbicos/dia de gás natural que importa da Bolívia, ou seja, abre-se uma porta de entrada de terceiros diretamente na importação de gás boliviano, que junto com a oferta de capacidade da TBG mencionada acima, reforça a perspectiva de múltiplos agentes envolvidos.

Mas o mercado de gás no Brasil não se limita ao gás natural somente, há também o gás liquefeito de petróleo (GLP) conhecido popularmente como gás de cozinha. O GLP é o produto derivado de petróleo de consumo mais popular no Brasil, sendo o principal combustível de uso doméstico.

Está disponível em praticamente 100% do território nacional e, de acordo com o Sindigás, quase 70 milhões de residências e mais de 150 mil empresas, nos diversos setores da indústria, comércio e serviços, utilizam o GLP.

O Brasil não é autossuficiente quanto ao GLP, e tanto a produção nacional quanto a importação são hoje controladas pela Petrobras. O preço do produto vem subindo consistentemente nos últimos anos, e através da resolução CNPE nº12/2019, o governo estabelece que a ANP priorize a conclusão dos estudos necessários para aprimorar o normativo regulatório do setor, na busca da promoção da livre concorrência.

Além disso, Petrobras e CNPE celebraram um TCC em junho do ano passado quando a estatal se comprometeu a vender oito refinarias no país até o fim de 2021, e cujo processo de venda já está em andamento.

De acordo com a ANP, durante o ano de 2018, em torno de 66% da produção de GLP no país foram oriundas do refino, e os outros 34% a partir do processamento do gás natural nas unidades de processamento de gás natural (UPGNs).

Ou seja, percebemos aqui que a iniciativa em andamento para a venda das refinarias deverá ter um impacto direto para um mercado de GLP mais competitivo, e as iniciativas relacionados ao gás natural também serão relevantes, já que mais de um terço da produção nacional de GLP vem do gás natural. E ainda, de acordo com a EPE, a oferta por GLP tende a crescer com a expansão e construção de UPGNs nos próximos anos.

Conclusão, pode-se observar a sinergia entre governo, regulador e agentes do mercado de gás no intuito de operacionalizar as mudanças necessárias. Ainda há muito a ser feito, a harmonização das legislações estaduais na distribuição do gás natural é um bom exemplo, mas tudo indica que o curto prazo para se perceber a livre concorrência no mercado de gás brasileiro é uma aposta consistente.

*Sócio-diretor da KPMG e líder de regulação em óleo e gás

Fonte:diariodocomercio.com.br