Esqueça a Bolsa de Valores ou a especulação imobiliária. O negócio que nunca sai de moda nem apresenta risco ao investidor é o racismo à brasileira. Fundada na colonização, capitalizada na escravidão e repaginada na era das redes sociais, a discriminação racial se consolida cada vez mais como o título de renda mais sólido para governos, empresas e pessoas físicas que lucram com a eliminação de corpos negros. Nem mesmo o brutal assassinato de João Alberto Freitas, o Beto, espancado por seguranças na porta do Carrefour, em Porto Alegre, ameaça a estabilidade dos rendimentos. Afinal, toda a cartela de aplicações está estruturada sobre a lógica da diversificação das formas de opressão e massacre.


O crime desta quinta-feira, justamente na véspera do Dia da Consciência Negra, choca pela brutalidade e frieza dos executores, mas não pelo CNPJ. Nos últimos anos, o Carrefour se especializou em protagonizar episódios de extrema violência. Não faz nem quatro meses que um funcionário morreu após sofrer ataque cardíaco em uma loja de Recife e teve o corpo coberto com guarda-sóis para que o estabelecimento continuasse funcionando normalmente. Em 2018, uma cadela morreu por golpes com barra de ferro desferidos pelo segurança de outra unidade, em Osasco. No mesmo ano, em São Bernardo do Campo, um cliente negro foi espancado por falsa suspeita de furto.


Em comum entre todos os episódios, a resposta padrão do Carrefour, que se comprometeu a revisar políticas internas e a afastar os agressores. Assim, a rede francesa de supermercados terceiriza responsabilidades, como se a culpa fosse somente dos indivíduos, e não de uma empresa incapaz de reprimir reiteradas práticas cruéis em seus estabelecimentos. Mas a resposta pendente nos comunicados oficiais é tão ou mais importante que ações punitivas: quando os donos e acionistas do Carrefour vão pagar essa conta?

Diante do racismo e da morte de negros, basta uma nota de repúdio. É assim que as instituições lidam com a violência discriminatória e contribuem para banalizar acontecimentos que, em qualquer sociedade de princípios igualitários, deveriam causar profunda consternação. Porém, o vice-presidente Hamilton Mourão nem se acanhou em afirmar categoricamente, mesmo no calor do assassinato de Beto, que “não existe racismo no Brasil”. Em aparições públicas anteriores, o general já havia se referido a negros como “pessoas de cor”, associou indígenas a “certa herança de indolência” e disse ter um neto bonito devido ao “branqueamento da raça”.

Comportamento tão esdrúxulo e desprezível valeria, no mínimo, uma enérgica reprimenda do Governo, além da urgente manifestação de solidariedade à família da vítima. Mas o que esperar quando o país é governado por um chefe de Estado ―Jair Bolsonaro― que tem em seu currículo as seguintes declarações:

— Ele [o deputado Hélio Lopes, negro] demorou pra nascer e deu uma queimadinha.

— Não aceitaria ser operado por um médico cotista.

— Não sou racista. Tenho até um cunhado negro.

— O afrodescendente mais leve pesava sete arrobas.

 

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Em São Paulo, manifestantes invadiram uma unidade do Carrefour

e atearam fogo em protesto contra a morte de Freitas, em Porto

Alegre.RICARDO MORAES / REUTERS

 


No Brasil atual, o desinibido racismo propagado pelo presidente da República é tratado como brincadeira e, vez ou outra, ainda arranca gargalhadas de seus apoiadores. Seria menos desalentador se a atitude estivesse restrita a uma corrente extremista de pensamento, mas a capitalização em cima do racismo também é praxe de uma parcela da oposição a Bolsonaro. Nesta sexta, o governador João Doria afirmou que “cenas de racismo demonstram o quanto precisamos evoluir para termos uma sociedade mais justa e igualitária”. O mesmo que, antes de assumir o cargo, cravou que a polícia de São Paulo iria “atirar para matar” e classificou como exceção os episódios em que policiais agiram com violência contra a população. Sabe-se que o alvo preferido dos agentes de segurança chefiados por Doria são justamente negros e pobres, cujos assassinatos que cresceram durante a pandemia não inspiraram nada além de notas de repúdio do governador empreendedor.

Sai barato ser racista num país que brotou do sangue de escravos e continua regido por normas dos homens brancos que conservam seus privilégios pelo aperfeiçoamento de um sistema de exploração. Não é por acaso que quem comete crime de racismo, em vez de punido, acaba promovido ou eleito a um cargo público. Da mesma maneira, atribuir a vidas negras o peso de mercadoria barata, que pode ser abatida a qualquer instante sem maiores consequências, é um reflexo das cadeias empresariais que usurpam sua força de trabalho a preço de banana —e ainda arrecadam aplausos da clientela ao aproveitar o 20 de novembro para fazer marketing social com campanhas enganosas em nome da diversidade.

Não foi o primeiro nem terá sido o último espancamento físico de uma pessoa negra nas dependências de um supermercado no Brasil. Somente no primeiro trimestre deste ano, o Carrefour lucrou 757 milhões de reais. Seu faturamento anual supera 60 bilhões de reais. Mesmo que o assassinato de Beto gerasse uma onda de protestos semelhante à dos Estados Unidos em memória de George Floyd, não há previsão de retração dos ganhos por dano à imagem, assim como não houve após os episódios do passado. Enquanto as empresas seguem pregando consciência negra sem prática antirracista, o extermínio de negros permanece intocável como o empreendimento mais bem-sucedido do Brasil.