“Para ler ao som de Ângela Ro-Ro”, anota Caio Fernando Abreu antes das primeiras linhas de “Os Sobreviventes”, conto que, em quatro parágrafos, é o segundo do livro Morangos Mofados, de 1982. No texto, o leitor é apresentado a dois personagens: um homem, que narra a cena da noite de sua despedida, regada a vodca nacional, cigarros e o verborrágico desencanto da mulher, a personagem que fica, protagonista de uma “DR” no formato de um quase monólogo. O formato, portanto, é curioso, fazendo que, se o discurso dela apareça sempre na descrição dele.

Mais de 35 anos depois da primeira publicação, a história chegou às mãos do ator e dramaturgo Thomaz Cannizza. Por indicação de uma amiga, devorou as 1.798 palavras que compõem a trama em 2018, coincidentemente, na véspera das eleições federais de então. “O que mais me capturou nesse conto foi justamente essa ideia de desilusão que esses personagens estão vivendo, que eu via refletida em mim e nas pessoas que eu convivo naquele momento”, recorda, lembrando que a obra, ambientada nos anos de 1980, retrata temas como a angústia do envelhecimento dos ideais políticos, refletindo, ao mesmo tempo, sobre como o político e o pessoal se retroalimentam.

Talvez por se sentir enredado por aquele clima comum, o artista entendeu, logo na primeira leitura, que precisava levar “Os Sobreviventes” para os palcos. Um feito que, ao lado da atriz Luciana Veloso e da diretora Ana Regis, ele realiza a partir desta sexta-feira (28), quando a peça homônima ao conto estreia no Centro Cultural Banco do Brasil - Belo Horizonte (CCBB BH).

Na trama, “Ele”, personagem de Cannizza, e “Ela”, vivida por Luciana, vivem um ex-casal que, por algum motivo, seguem vivendo juntos até que um deles decide se despedir. “Agora, ambos terão uma semana decisiva como uma última chance para encararem as escolhas do passado e se libertarem”, explica a sinopse do espetáculo, que cumpre temporada até o dia 21 de abril, com apresentações de sexta a segunda.

Mais que uma adaptação, o ator e dramaturgo explica que a peça é uma criação a partir do conto original. “Ter um texto do Caio Fernando Abreu como ponto de partida é um grande deleite, mas tem seus desafios. Primeiro, que a história original é a de uma cena, de uma noite, que optamos por ampliar para uma semana inteira”, detalha, acrescentando que, inicialmente com Luciana e, depois, com Ana Regis, se questionava muito sobre a relação daqueles dois personagens. “É uma dramaturgia que convida o espectador a decifrar o que levou eles àquela situação, a tentar entender o porquê de ir embora e até a se questionar se o personagem vai mesmo embora”, aponta.

Gestação
Embora Thomaz Cannizza tenha desejado levar “Os Sobreviventes” para os palcos desde a primeira leitura, a gestação foi iniciada no ano seguinte, em 2019, durante uma residência artística, realizada ao lado de Luciana Veloso, na sede da Fundação Nacional de Artes (Funarte), em BH.

Thomaz Cannizza e Luciano Veloso, que protagonizam a peça Os Sobreviventes | Crédito: Letícia Souza/Divulgação
Depois de um tempo trabalhando o texto, os dois convidara a diretora Ana Regis para uma demonstração de processo, espécie de sessão aberta em que convidados acompanham o processo de criação de uma peça. “Para minha surpresa, quando cheguei lá, só eu estava na plateia. Eles fizeram uma leitura encenada e, no final, explicaram que queriam que eu os dirigisse. E claro que aceitei”, relata a diretora.

Tanta convicção não é sem propósito. “Primeiro, eu já conhecia o Thomaz, que foi meu estagiário quando eu dava aulas de teatro para uma escola da rede privada – ele inclusive me substituiu quando eu parei de dar aulas lá. Eu já tinha visto peças dele, inclusive ‘Fred & Laura’ (que rendeu ao ator o prêmio de Melhor Ator da Sinpar). Também conhecia o trabalho da Luciana, por exemplo, em ‘A Obscena Senhora H’, um trabalho primoroso com textos da Hilda Hilst (pelo qual recebeu o prêmio de Melhor Atriz pelo Cenym)”, elogia.

A segunda razão, prossegue ela, vem de uma identificação com a obra de Caio Fernando Abreu. “Eu amo o livro ‘Morangos Mofados’. Sou da geração desses personagens e me identifico muito com aquela angústia que eles estão sentindo”, assinala.

Espera
Ana Regis menciona que, quando começou a trabalhar nesta montagem, o texto dramatúrgico de Thomaz Cannizza já estava pronto. “A gente foi mexendo durante esse processo de ensaio, fazendo cortes, reescritas, sempre tendo como norte o conto original e suas características, além de ser muito reverente ao autor e a seu universo”, examina.

Pelo adiantado dos trabalhos, a surpresa foi que o projeto tivesse que demorar tanto até chegar aos palcos. “Quando veio a pandemia (da Covid-19, em 2020), decidimos não fazer o espetáculo no formato online, mas mantivemos a rotina de ensaios, mesmo que remotamente, por videoconferência”, lembra.

A partir do obstáculo, o projeto ganhou uma primeira derivação, o vídeo “Tudo que eu queria te dizer mas não vou (ou Prólogo)”, realizado com recursos da Lei Aldir Blanc, que imagina o cotidiano dos personagens antes do momento apresentado na montagem propriamente dita. “Este trabalho foi feito nos moldes do contexto pandêmico, com cada um na sua casa. Mas a edição faz parecer que estávamos no mesmo ambiente”, detalha Cannizza.

Com a superação da crise sanitária, era chegada a hora de finalmente concretizar o projeto. “A gente já tinha decidido que faríamos na marra quando fomos contemplados pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte”, exalta Ana Regis, que já não consegue – e nem tenta – esconder a expectativa pela estreia. “Meu desejo é que o público se identifique com os sentimentos desses personagens, sobreviventes em suas múltiplas definições e possibilidades, assim como nós, que precisamos sobreviver a tanta coisa esquisita que atravessa a nossa história”, finaliza.

SERVIÇO
O quê. Temporada de estreia da peça ‘Os Sobreviventes’
Quando. A partir desta sexta-feira (28), às 19h. Até 21/4. Sessões de sexta a segunda-feira, às 19h.
Onde. Teatro II do CCBB BH (praça da Liberdade, 450, Funcionários)
Quanto. A partir de R$ 15 (meia-entrada). Ingressos disponíveis no site ccbb.com.br/bh e na bilheteria física do CCBB BH.