Em 2015, Beatriz Segall entregou um texto dramático para o diretor Gustavo Barchilon. “Infelizmente, sou a única atriz que pode fazer este papel”, avisou. Tratava-se de Vera, senhora solitária e no fim da vida, que começa a refletir sobre dilemas existenciais após a visita inesperada do neto, de quem já não se lembrava.


A peça era 4.000 miles, da americana Amy Herzog. Sucesso da Broadway e vencedora do Prêmio Pulitzer na categoria drama, a montagem chega neste fim de semana ao Palácio das Artes, em Belo Horizonte.
 
O título mudou para Ponto a ponto - 4.000 milhas. O texto tomou outro rumo depois da morte da atriz, em 2018. Barchilon enfrentou um impasse: queria montá-lo, mas quem faria o papel de Vera?. Até porque, Beatriz Segall já avisara que seria a “única” capaz de encarar a personagem. Entregá-la a outra seria traição...


Solução arriscada
 
A solução encontrada foi ousada, arriscada e um tanto quanto perigosa. O diretor escolheu um ator. E não um ator qualquer, mas Luiz Fernando Guimarães. Dividem o palco com ele Bruno Gissoni (Léo, neto de Vera) e Renata Ricci (como Rebeca e Amanda).


Detalhe: Barchilon e Luiz Fernando jamais haviam trabalhado juntos. O diretor conta que o nome de Luiz lhe veio naturalmente à mente porque o ator tem várias características de Beatriz Segall.


“Por mais que a Beatriz tivesse aquele semblante sério, ela era extremamente engraçada, irônica e debochada. Quando me apresentou o texto da Amy Herzog, ela me disse que as características e dilemas da personagem eram os mesmos que experimentava naquele momento”, relembra Barchilon.


De acordo com ele, por mais que não pareça, Luiz Fernando está se tornando um idoso - em novembro, completa 73 anos. E experimenta algumas das situações que Vera vivencia, como as falhas de memória.


Embora Ponto a ponto – 4.000 milhas seja um drama, há momentos cômicos. “A primeira cena é a Vera atendendo à porta sem dentadura. Uma coisa horrível!”, brinca o ator.


O texto aborda questões mais sérias à medida que a trama vai se desenrolando. Léo, por exemplo, é o contraponto interessante à avó, por ser jovem e aventureiro.


O cenário é o apartamento de Vera. O neto, que viaja de bicicleta pelo país, perdeu a comunicação com a família e deixa a avó embaraçada com sua inesperada visita. Primeiro, por não reconhecê-lo. Depois, por reencontrá-lo num momento difícil para ela.


Léo pede à avó para não avisar à mãe, filha de Vera, sobre sua chegada. O relacionamento delas é ruim.
 
Relacionamentos familiares, distância, idade, morte e política fazem parte da trama. O bom humor, contudo, é a essência de Vera. “Senhora muito vaidosa e dona de si, ela tem características muito infantis. Não admite que está envelhecendo”, comenta Luiz Fernando.


A identificação do público com aquela avó vaidosa impressionou o ator. “Quando estreamos no Rio de Janeiro, foi engraçado ver que, nas primeiras apresentações, o público era composto majoritariamente por senhoras. Nas semanas seguintes, muitas voltaram levando as filhas, que acabaram se identificando com a Renatinha (Ricci). E, por fim, voltaram essas senhoras, as filhas mais os netos”, relembra.
 
Luiz Fernando quase perdeu a saia
 
A capacidade de se comunicar com três gerações revela a sensibilidade de Amy Herzog. Barchilon garante ter sido fiel às marcações da autora. Porém, em se tratando de teatro, imprevistos acontecem.


“Estávamos nos apresentando em São Paulo. Além de interpretar, faço todo um trabalho de contrarregragem. Na cena em que peguei uma bandeja e mais outras coisas, acabou que me enrolei todo e minha saia caiu. A primeira coisa que pensei foi: ‘Putz, estou de cueca, e a Vera não deveria usar cueca’”, diz o debochado Luiz Fernando.


A sorte é que o ator usava outra saia por baixo da que caiu. Mas foi obrigado a encarar o público e avisar: “Pessoal, tivemos um probleminha aqui. Vamos, então, dar aquela paradinha gostosa para relaxar. Aí vou levantar minha saia e a gente continua a cena, certo?”.


Rindo, Luiz Fernando revela que saiu completamente da personagem. “O que eu ia fazer? Não dava para fingir que nada aconteceu.”
 
O know how do Asdrúbal
 
A solução encontrada pelo ator mostra o quanto ele carrega do Asdrúbal Trouxe o Trombone, grupo de teatro que criou ao lado de Regina Casé, Perfeito Fortuna e Hamilton Vaz Pereira, na década de 1970. A trupe ficou conhecida pela irreverência e comicidade. Lá, Luiz Fernando perdeu o pudor de errar e, sobretudo, de admitir que errou.


Gustavo Barchilon diz que Luiz soube dosar o humor para que Vera não soasse caricata. E também destaca a presença de mulheres na equipe: Natália Lana é responsável pelo cenário, Graziela Bastos pelos figurinos, e Graziele Saraiva pela produção executiva.


De acordo com o diretor, isso garantiu o enfoque feminino, impedindo que o machismo contaminasse a montagem pelo fato de um homem fazer o papel de mulher.


“A peça foi um presente que o Gustavo me deu. Ela proporciona às pessoas um momento de respiro e reflexão. Há momentos engraçados e outros em que a gente chora, chora mesmo. As pessoas saem do teatro com outro pensamento a respeito das relações familiares”, garante Luiz Fernando Guimarães.


PONTO A PONTO – 4.000 MILHAS
 
Texto de Amy Herzog. Direção e adaptação: Gustavo Barchilon. Com Luiz Fernando Guimarães, Bruno Gissoni e Renata Ricci. Neste sábado (27/8), às 20h30, e domingo (28/8), às 19h. Palácio das Artes. Avenida Afonso Pena, 1.537, Centro, (31) 3236-7400. Inteira: R$ 150 (plateia 1, fileiras A a G), R$ 100 (plateia 1, fileiras H a M) e R$ 75 (plateias 2 e superior). Meia-entrada na forma da lei. À venda na bilheteria da casa e no site Eventim.