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No pós-parto, seguiu-se o calvário por ela narrado: quando quis alimentar o bebê, ouviu de uma enfermeira que não poderia fazê-lo, sem maiores explicações. Ocorre que ela teria que voltar a ser examinada e poderia demandar nova cirurgia: “Foi quando me disseram que não era uma laceração simples, eu estava costurada até o intestino”, narra. Nizia recebeu alta no dia 11, mas só conseguiu amamentar seu filho um mês depois e, nesse ínterim, chegou a sofrer com incontinência urinária e fecal. Hoje, depois de cinco meses, ela ainda cumpre uma rotina de atendimentos médicos para recuperar órgãos. “Ainda tenho pontos no intestino, fibrose, e o tratamento com a fisioterapeuta continua. Ainda tem chances de eu precisar reconstruir meu intestino devido a uma possível fístula intestinal”, queixa-se.
O que mais choca, diz, foi descobrir como a estrutura da maternidade pode ser um lugar de sofrimento e negligência, motivo pelo qual decidiu tornar a história pública: quis se juntar a outras mães e profissionais da saúde que lutam contra a violência obstétrica, que afeta uma em cada quatro mulheres em algum momento do ciclo gravítico puerperal, conforme pesquisa empreendida pela Fundação Perseu Abramo. O relato de Nizia também serve de alerta para um efeito colateral da pandemia do novo coronavírus: neste período, podem ocorrer mais violações e negligência durante o parto. O temor é manifesto pela professora do departamento de enfermagem materno-infantil e de saúde pública da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Érica Dumont.
“De imediato, instituições proibiram mulheres de estarem acompanhadas. Tem sido preciso uma luta para garantir que o acompanhante, sem sintomas gripais, possam estar com essa mulher”, menciona a coordenadora do projeto de pesquisa Violência Obstétrica: Enfrentamento e Empoderamento (Voe), que, em parceria com a Universidade de Ryerson, no Canadá, busca mapear a realidade das maternidades em Belo Horizonte.
Érica completa que há um recorte de classe, de cor e de tamanho nessas ocorrências. “Mulheres brancas de classe média sofrem episódios de violência obstétrica, mas estão menos suscetíveis a isso do que as negras, que são tratadas como se fossem mais resistentes à dor, e do que as gordas, que muitas vezes não encontram uma estrutura que as acolha”, sinaliza.
Grupo de enfermeiros presenciou situação de violência obstétrica em hospital de BH
Sem uma estatística confiável sobre o tema, é difícil verificar se houve algum aumento no número de casos e de denúncias. O que se tem são esporádicos relatos feitos nas redes sociais. Na última semana, pelo menos dois alcançaram grande repercussão.
No dia 9, quarta-feira, um dia antes de Nizia Ramos tornar pública a história dela, a equipe Bom Parto compartilhou detalhes de uma experiência parecida. Desta vez, o caso se deu em um hospital da rede privada de Belo Horizonte, que integra o projeto Parto Adequado, capitaneado pela Agência Nacional de Saúde (ANS).
No post, o grupo de enfermeiros obstetras que busca estimular o parto normal e o empoderamento feminino relata ter presenciado como uma mulher “entrou na maternidade feliz e saudável para ganhar o seu bebê e saiu de lá machucada e fragilizada”. Eles informa que a gestante teve “uma evolução muito rápida em seu processo de trabalho de parto”, que poderia ser natural, dado que ela alcançou dilatação completa com bolsa íntegra. “Mas, diante de uma equipe despreparada para assisti-la, se viu em meio a tanta violência: constrangimento, violência verbal, manobra de Kristeller, episiotomia…”, lê-se na publicação, que não revela em que instituição o fato ocorreu.
Conselho de Medicina não reconhece e questiona o uso da expressão
Vale registrar, o termo “violência obstétrica” é rechaçado por entidades de classe, como o Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais (CRM-MG): “Várias violências ocorrem durante a assistência ao parto e podem ser empreendidas por um porteiro, pela equipe de limpeza ou pelo gestor do hospital, não apenas por obstetras”, critica Cláudia Navarro, ex-presidente e atual vice-presidente do CRM-MG. Em junho do ano passado, no entanto, o Ministério da Saúde reconheceu a legitimidade do uso da expressão, atendendo uma recomendação do Ministério Público Federal (MPF), que, por sua vez, estava reagindo a um despacho da pasta solicitando que a terminologia fosse evitada e, possivelmente, abolida em documentos de políticas públicas.
Apesar de não existirem dados oficiais sobre a ocorrência desse tipo de violação, Cláudia confirma que a obstetrícia é uma das especialidades médicas que mais acumulam denúncias. Ante esse fato, ela defende que comportamentos abusivos sejam comunicados ao CRM-MG. Para isso, pacientes devem preencher um formulário detalhando os acontecimentos. Há espaço para que possíveis provas sejam anexadas – como fotos e exames. A partir desse documento, é realizada uma investigação interna e sigilosa, sem prazos definidos de apuração. Se irregularidades forem comprovadas, as sanções previstas vão desde advertência até a cassação do direito de exercício profissional da medicina.
Casos devem ser observados individualmente, defendem obstetras
Em consonância com as ponderações de Cláudia Navarro, a ginecologista obstetra Mônica Nardy situa que práticas podem ou não ser classificadas como violência obstétrica, havendo necessidade de se observar as especificidades de cada caso.
“A litotomia (posição em que a gestante é colocada em uma maca para ter o parto) não vai ser sempre uma violência. Esta é uma prática que, no passado, era ensinada como regra. Nos últimos cinco anos, diante de evidências científicas, sabemos que é importante dar a opção de a mulher mudar de posição”, comenta. Todavia, uma paciente que buscava parir em pé pode se sentir violentada ao ser impedida. Em outro exemplo, Mônica cita o uso do fórceps. “É um equipamento que serve para salvar vidas, não é que nunca deva ser usado: é sobre como esse paciente está sendo orientado”, indica, salientando que intervenções podem ser necessárias e que uma visão radicalizada pode contribuir para uma percepção deturpada desses procedimentos.
As duas profissionais concordam que a manobra de Kristeller, citada por Nizia, não deve ser utilizada em hipótese alguma, pois não traz nenhum benefício – nem para o bebê, nem para a grávida. Outra intervenção muito criticada por correntes que defendem a humanização do parto é a episiotomia, quando é feito um corte entre a vagina e o ânus. Mônica lembra que, em termos de boas práticas, a estratégia não é indicada – mas pondera que, nos protocolos médicos, é colocada como eletiva. Ela salienta que a busca por atualização acaba sendo algo muito pessoal: “Sei de colegas que se formaram comigo, há 12 anos, e que seguem conduzindo da mesma maneira”, pontua.
Doula acredita que estrutura de maternidades contribui para que violência seja perpetuada
Para a doula Camilla Dutra, o problema passa, de fato, pela ausência de atualização, mas se agrava na estrutura das maternidades. “Quando estamos falando de parto, estamos falando de um evento fisiológico. E, como tal, ele deve ser assistido e, se houver necessidade, procedimentos devem ser feitas. Inclusive, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aconselha que o obstetra não assuma postura intervencionista”, pondera. “O pilar central tem que ser a mulher, e não o médico – e só se houver intercorrência é que o médico deve ser chamado a agir; antes disso, o enfermeiro obstetra pode auxiliar a mãe”, conclui.
Foi Camilla que tornou público o relato de Nizia. Depois da publicação, feita no Instagram, uma promotora de Justiça entrou em contato com elas. A mãe de Lorenzo, agora, quer realizar denúncia junto ao Conselho Regional de Enfermagem de Minas Gerais (Corem) e ao CRM. Em contato por telefone, a direção do hospital itabirano não se manifestou sobre o caso, se limitando a orientar que a paciente ou algum familiar registre reclamação por telefone, por email ou presencialmente para que a ocorrência seja investigada.
Partos traumáticos têm repercussão em relação à saúde mental
A psicóloga familiar Daniela Bittar garante que mulheres no ciclo gravídico puerperal que são vítimas de violações sofrem graves abalos em relação à saúde mental. “A violência obstétrica pode desencadear um transtorno patológico depressivo, por exemplo”, informa.
Nos períodos de gestação e puerpério, explica ela, a mulher tem um aumento no risco de adoecimento psíquico em até 70 vezes. Ocorre que, depois de um período de grande descarga hormonal, haverá uma queda na produção de hormônios brusca no parto. “Isso, por si só, desencadeia a possibilidade de vários transtornos – tanto que, nas primeiras duas semanas do pós-parto, oito de cada 10 mulheres vão apresentar o baby blues, que nada mais é que uma reação hormonal que promove sensações de angústia e de tristeza”, expõe.
Geralmente, prossegue a Daniela, o parto traumático agrava os processos de adoecimento psíquico. “Uma violência obstétrica pode desencadear um transtorno de estresse pós-traumático (TEPT) e levar a um quadro de ausência de vínculo com o bebê, de dificuldade de elaboração, de distanciamento social, de vontade de morrer, de depressão, depressão no pós-parto, transtorno generalizado no pós-parto…”, enumera.
Em Minas Gerais, lei instituída em 2018 busca coibir prática
Sancionada em dezembro de 2018 e fruto de um projeto de autoria da deputada Geisa Teixeira (PT), a Lei 23.175 busca garantir atendimento humanizado à gestante, à parturiente e à mulher em situação de abortamento visando a prevenção da violência na assistência obstétrica no Estado de Minas Gerais.
De acordo com a legislação estadual, são condenadas práticas que restrinjam direitos garantidos por lei a essas mulheres e que violem a sua privacidade e a sua autonomia.
A norma considera violência obstétrica situações como o impedimento de acompanhante em qualquer período do ciclo gravídico puerperal e a recusa de aplicar, quando solicitado e quando as condições clínicas permitirem, anestesia ou outros métodos para alívio da dor. Também não é permitido impedir o contato da criança com a mãe logo após o parto.
A lei veta ainda o uso de termos depreciativos durante esses atendimentos e a recusa em atender demandas dessas mulheres, desde que não se coloque em risco a saúde da mulher e da criança. No caso daquelas em privação de liberdade, o uso de algemas durante o parto é proibido.
Os profissionais de saúde, por fim, devem manter em sigilo informações sobre mulheres em situação de abortamento legal, salvo para proteção da paciente e com o seu consentimento.
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No pós-parto, seguiu-se o calvário por ela narrado: quando quis alimentar o bebê, ouviu de uma enfermeira que não poderia fazê-lo, sem maiores explicações. Ocorre que ela teria que voltar a ser examinada e poderia demandar nova cirurgia: “Foi quando me disseram que não era uma laceração simples, eu estava costurada até o intestino”, narra. Nizia recebeu alta no dia 11, mas só conseguiu amamentar seu filho um mês depois e, nesse ínterim, chegou a sofrer com incontinência urinária e fecal. Hoje, depois de cinco meses, ela ainda cumpre uma rotina de atendimentos médicos para recuperar órgãos. “Ainda tenho pontos no intestino, fibrose, e o tratamento com a fisioterapeuta continua. Ainda tem chances de eu precisar reconstruir meu intestino devido a uma possível fístula intestinal”, queixa-se.
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Casos devem ser observados individualmente, defendem obstetras
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“A litotomia (posição em que a gestante é colocada em uma maca para ter o parto) não vai ser sempre uma violência. Esta é uma prática que, no passado, era ensinada como regra. Nos últimos cinco anos, diante de evidências científicas, sabemos que é importante dar a opção de a mulher mudar de posição”, comenta. Todavia, uma paciente que buscava parir em pé pode se sentir violentada ao ser impedida. Em outro exemplo, Mônica cita o uso do fórceps. “É um equipamento que serve para salvar vidas, não é que nunca deva ser usado: é sobre como esse paciente está sendo orientado”, indica, salientando que intervenções podem ser necessárias e que uma visão radicalizada pode contribuir para uma percepção deturpada desses procedimentos.
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