A liberação do primeiro remédio à base de maconha no mercado brasileiro, há pouco mais de um ano, foi comemorada por pacientes da cannabis medicinal em todo país. No entanto, a falta de consenso entre médicos sobre a prescrição do medicamento ainda é uma barreira a ser vencida por portadores de doenças como esclerose múltipla, Parkinson e dor neuropática.
Se, de um lado, há especialistas que defendem o uso dos derivados da cannabis para terapias específicas, de outro, há profissionais que temem os impactos desse consumo em longo prazo.
Um dos alvos da polêmica é o Mevatyl, medicamento indicado para tratamento de esclerose múltipla que além do canabidiol – que tem ação terapêutica –, traz na composição o tetrahidrocanabinol (THC), substância responsável pelo efeito psicoativo da maconha.
O psiquiatra Salomão Rodrigues Filho, membro do Conselho Federal de Medicina (CFM), afirma que a presença do THC restringe a aplicação do remédio e torna o consumo arriscado para os adolescentes.
“O uso dessa substância antes dos 14 anos reduz consideravelmente o desenvolvimento do QI. Portanto, nenhum médico vai receitar um medicamento como esse para os jovens”, explica.
“Precisamos de modelo regulatório responsável com acesso adequado para cannabis mesmo para o uso recreativo”
Cristiano Maronna
Presidente da Plataforma Brasileira de Política de Drogas
Mesmo em relação ao canabidiol, que já tem a eficácia reconhecida por estudos em todo mundo, ainda há receio por parte de muitos profissionais. “Não há noção dos riscos a longo prazo. Isso deixa os médicos muito inseguros”, acrescenta Rodrigues.
Para o médico Ricardo Ferreira, especialista em cirurgia de coluna e dores crônicas, os riscos do uso controlado de remédios como o Mevatyl podem ser menores do que diversas outras medicações usadas com muito mais frequência. “Além disso, o canabidiol anula o efeito alucinógeno do THC”, completa.
Resistência
O preconceito relacionado ao uso recreativo da cannabis e a difusão de políticas de repressão às drogas também contribuíram para que muitos médicos se tornassem mais resistentes à prescrição de medicamentos como o Mevatyl. Quem destaca é o cirurgião oncológico e mastologista Leandro Ramires, presidente da Associação Brasileira de Usuários da Cannabis Medicinal (AMA+ME).
“Tudo isso impediu a ciência de andar para frente e o registro de origem canábica no país ficou muito complicado. O estudo clínico para registro do Mevatyl, por exemplo, foi apenas sobre a esclerose múltipla. Mas sabemos que ele é útil para muitas outras doenças”, avalia.
A Ipsen, empresa detentora da licença para comercialização do remédio, afirmou que o produto já está disponível nas farmácias do país desde o início de março. No entanto, a reportagem contactou pelo menos quatro das maiores redes de drogarias de Belo Horizonte, que afirmaram não ter o medicamento para venda.
Além Disso
Enquanto a rigidez na regulação do cultivo de cannabis para uso medicinal obriga pacientes a importarem o canabidiol de outros países, laboratórios nacionais trabalham em pesquisas para a fabricação de remédios à base de maconha no Brasil.
Um deles é a farmacêutica Prati-Donaduzzi, com sede no Paraná, que até o fim do ano espera colocar no mercado o Myalo, medicamento com alto grau de canabidiol indicado para o tratamento de epilepsias refratárias.
Para Eder Maffissoni, presidente da companhia, um dos desafios é conseguir disponibilizar o remédio por um preço justo, já que o Mevatyl deverá custar pelo menos R$ 2.500.
“Os custos de plantio e extração são elevados, mas o processo de purificação é mais caro ainda. Separar o canabidiol do THC encarece demais, o que faz com que produtos ainda sejam posicionados para a classe A”, explica.