A demissão coletiva dos três chefes das Forças Armadas, episódio inédito na República, foi o ponto alto de uma escalada de decisões do presidente Jair Bolsonaro em choque com os interesses da caserna. Por ora, os militares conseguiram traçar uma linha limitando o avanço da política sobre os quartéis. Os oficiais resistiram a uma tentativa do governo de cooptar apoio para propostas visando um Estado de exceção. O temor agora é de que os embates voltem à tona com a proximidade das eleições, em 2022.


Um dos pontos críticos da crise, que deve continuar criando tensão, é a nomeação do general Braga Netto para a Defesa. Aliado do presidente Jair Bolsonaro, ele não deve se furtar a atender os pedidos do chefe do Executivo. Na terça-feira (30), ele publicou um texto alusivo ao dia 31 de março de 1964, quando ocorreu o golpe militar. A mensagem, enviada aos quartéis, falava em “celebrar” a instauração do regime. “O movimento de 1964 é parte da trajetória histórica do Brasil. Assim devem ser compreendidos e celebrados os acontecimentos daquele 31 de março”, descreveu um trecho da mensagem. A ação rendeu um pedido do Psol na Procuradoria-Geral da República (PGR) para que as declarações sejam retiradas dos sites do governo.


A avaliação de fontes no meio militar é de que, no próximo ano, com as reiteradas afirmações por parte do presidente sobre alegações de fraude nas eleições, sem provas, e o acirramento da disputa política, podem ocorrer novos pontos de conflito. No entanto, a convicção é de que não haverá qualquer apoio político por parte da tropa. “Somos uma instituição de Estado, e isso tem ficado claro, e será sempre assim. Não há a menor possibilidade de as Forças Armadas embarcarem em qualquer aventura política”, diz um general, sob a condição de anonimato.


A polarização deve ser marcante, principalmente, com a eventual disputa entre Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva. Caso o presidente vá mal nas pesquisas, ou perca a eleição, as alegações de fraude, mesmo sem provas, devem se intensificar — o que pode gerar instabilidade, como ocorreu nos Estados Unidos após o pleito que deu vitória a Joe Biden.


Professor titular da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), João Roberto Martins Filho afirma que houve um sério estremecimento entre o presidente e os militares. A crise se agravou, segundo o professor, pelo fato de Bolsonaro ter agido com eles da mesma forma como atua com qualquer ministro demitido. “Ele demite de forma desonrosa”, afirma. Martins Filho, estudioso das Forças Armadas, relata que o presidente está em uma fase ruim, com diversos contratempos, perda de apoio, e ainda cruzou mais uma linha, agora, envolvendo os militares que apoiaram a sua eleição.


“Com todo o apoio que deram a Bolsonaro, não acreditavam que ele fizesse uma coisa que nenhum civil fez: demitisse o ministro e os comandos ao mesmo tempo, e de forma intempestiva”, diz. Martins Filho ressalta que o presidente já não conta mais com o mesmo respaldo dos militares que tinha no começo do governo.


Professor de história contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Federal de Juiz de Fora, Francisco Teixeira explica que, desde ao menos o segundo semestre do ano passado, os militares vinham tentando se desvincular do governo, ainda que não tenha havido nenhuma declaração pública ou manifestação explícita. Teixeira pontua que a tentativa de distanciamento se dá por diversos fatores, dentre eles a política externa do governo federal. Os militares se preocupam com a postura do Itamaraty, até recentemente comandado pelo ideológico Ernesto Araújo. Outro fator importante é que ficaram descontentes com o fato de o presidente e seu entorno, incluindo familiares, terem trazido à tona com muita frequência o Golpe de 1964 e o Ato Institucional número 5 (AI-5), o mais duro do período, expondo-os a discussões públicas.


O professor, que trabalha com história do fascismo e das ditaduras, ressalta ainda que é preciso diferenciar os 6,1 mil militares que estão no governo em cargos de civis (segundo um levantamento do Tribunal de Contas da União de julho de 2020) de todo o efetivo das Forças Armadas. De acordo com ele, com esse trauma gerado pelo Executivo, o presidente perdeu apoio entre os fardados, principalmente dos altos comandos.


“Apostaram todas as fichas no Bolsonaro, e estão vendo quem queria jogar com as Forças Armadas. Lula nunca falou ‘meu Exército’, nunca tentou interferir. Bolsonaro teve apoio no começo, mas não está tendo hoje”, diz. Sobre o endosso das Forças Armadas a Bolsonaro em 2022, é preciso aguardar quão profundo é o trauma da caserna com as ações políticas do Planalto e a intensidade do antipetismo. “Se o antipetismo é maior do que o trauma da tentativa de manipulação da instituição por parte do presidente Bolsonaro”, diz.


Analista político da Consultoria Dharma, Creomar de Souza frisa que, ao apoiar o presidente nas eleições, os militares de alta patente acharam que teriam tutela sobre o presidente. “Mas ele é incontrolável. É presidente, tem prerrogativas e as usa, e percebe que o movimento que o levou ao cargo não precisa de calmaria. Bolsonaro precisa do confronto, do atrito”, destaca.


Insatisfação crescente de policiais
 
Enquanto se fala sobre os militares das Forças Armadas, deputados bolsonaristas incentivam motins de policiais militares. Na última semana, houve um episódio na Bahia, no qual o policial Wesley Soares foi morto depois de fazer disparos de fuzil contra colegas, durante um surto psicótico. Antes de sua morte, houve uma negociação por mais de três horas. Depois disso, deputados federais bolsonaristas, como Bia Kicis (PSL-DF), publicaram mensagens alegando que o PM se insurgiu contra restrições ao comércio aplicadas pelos governadores e apoiando ações semelhantes.


Professor de história contemporânea da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Francisco Teixeira afirma que é preciso olhar para “o outro lado do rio”. De acordo com ele, o efetivo de policiais militares, vigilantes, guardas civis é maior que o das Forças Armadas e sem o mesmo respeito às hierarquias.


No ano passado, policiais militares do Ceará fizeram uma greve reivindicando melhores salários. Houve paralisação também na Paraíba, e sinais de insatisfação em outros estados. Professor titular da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), João Roberto Martins Filho ressalta que é difícil avaliar o cenário de apoio da PM a Bolsonaro, por envolver 26 estados e o Distrito Federal, não sendo possível saber o clima das tropas de todo o país. “Uma rebelião nacional no momento, acho que é improvável. É muito difícil articular. As próprias polícias militares têm serviço secreto e descobrem rápido”, diz.


O estudioso afirma que o presidente tem apoio de policiais militares pelo país, mas que é diferente quando se pensa em um cenário de revolta. “Existe um risco, mas seria uma aventura muito perigosa para ele (Bolsonaro)”, aponta, dizendo que, se um movimento do tipo acontecesse e não se sustentasse, ou se o presidente fizesse um apelo pessoal às tropas, seria o fim do governo. Para o professor, o incentivo à revolta de policiais representa um risco à democracia, ainda que um tanto remoto no momento.


Conforme o professor, os policiais vêm de classes populares, e a carreira é uma forma de ascender socialmente. Isso seria pesado no caso de uma articulação para uma revolta nacional. “Eles podem avaliar que não querem correr o risco de o movimento dar errado e eles serem expulsos da corporação”, diz. Sobre isso, o professor Francisco Teixeira pontua pensar o contrário. “São camadas mais populares que mantêm o apoio ao presidente, e os policiais militares vêm de camadas mais populares”.


“Tivemos perdas”


Presidente da Associação Nacional de Entidades Representativas de Policiais Militares e Bombeiros Militares (Anermb), sargento Leonel Lucas, que atua no Rio Grande do Sul, afirma que, se Bolsonaro alegasse, por exemplo, uma fraude nas urnas em 2018, com o clima que havia entre policiais militares e bombeiros a Bolsonaro, ele teria o apoio da categoria — e isso, independentemente de ordem dos governadores. Hoje, entretanto, segundo ele, o clima é de intensa insatisfação, de que o presidente não cumpriu suas promessas.


“Tivemos algumas perdas no governo dele. Na (Reforma da) Previdência, na PEC Emergencial. Tudo a gente tem que buscar deputados para não perder o que a gente tem. Achávamos que o presidente ia nos defender, mas não está tendo essa defesa por parte dele. Não vimos recíproca do presidente para o lado dos policiais militares”, critica.


O sargento cita ainda que a categoria conquistou o Ministério da Segurança Pública, mas que Bolsonaro “terminou com o sonho” dos policiais e bombeiros ao juntar a pasta com o Ministério da Justiça. “O presidente que nós elegemos e no qual jogamos as fichas terminou com o ministério”, afirma. A Anermb tem 38 entidades representativas em todo o Brasil, com mais de 209 mil sócios, entre policiais e bombeiros (cujo efetivo total no Brasil é de quase 500 mil, segundo o sargento). (RS e ST).