A derrota do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) na batalha contra as fake news, durante o processo eleitoral de 2018, parece ter sido insuficiente para a Corte estabelecer normas mais efetivas de fiscalização. Passados seis meses da campanha, a Justiça ainda não desenvolveu ações para coibir a prática, dizem especialistas. “Com as eleições de 2020 batendo à porta da população, é preciso rearranjar as táticas de combate”, diz o professor de marketing político digital Marcelo Vitorino.
Além de Vitorino, a reportagem ouviu dois consultores de marketing político, dois cientistas políticos e dois servidores do próprio tribunal, que pediram anonimato. Eles sugeriram ações para problemas enfrentados pela Justiça Eleitoral. Pontuou-se, entre as questões, medidas relativamente simples para, nas palavras deles, que “a Corte não seja novamente derrotada”.
“Mesmo durante o pleito, o cuidado no combate às fake news começou de maneira tardia”, reconhece um consultor do TSE. “Um pedaço dos problemas que envolvem o uso indevido da internet está aí, mas o resto você ainda vê hoje. A Justiça Eleitoral precisa fazer o acompanhamento dos temas depois que o processo eleitoral acaba”, afirma, emendando: “E o TSE não faz”. A título de comparação, o servidor explica que não há conceito definido sobre fake news, diferentemente de uma jurisprudência. “Por isso, precisamos dar atenção. Teremos eleições ano que vem.”
Para definir o que são as fake news, um cientista político que trabalhou na última campanha presidencial diz que “nem sempre é só notícia falsa, às vezes é algo fora de data. Algo real veiculado anos atrás que acaba ficando fora de contexto. E isso alimenta, inclusive, os governos atuais, não é uma coisa específica para eleição”. Notícias sobre o presidente Jair Bolsonaro a respeito da reforma da Previdência, enquanto ele era deputado federal, exemplifica, pipocam nas redes. “E o cara (eleitor) fica: ‘Ué, mas não foi o Planalto que propôs a mudança?’”
“Apequenou-se a discussão em torno do crime digital, que manipula a democracia tratando todos os problemas como fake news”, explica um cientista político. Ele acredita que a disseminação de mensagens com intuito de prejudicar políticos precisa ser tratada com mais seriedade, como em outros países. Ferramentas de envio, hoje, acabam facilitadas pelo WhatsApp, que está sempre à mão. “Ninguém se preocupa em conferir data e hora, ou pensar na credibilidade do portal da notícia”, acrescenta.
Mudança
“Desde a Revolução Francesa, com a distribuição de notícias com temas contraditórios, cujo único objetivo era confundir a população. Fake news é uma expressão ‘criada’ pelo presidente norte-americano Trump”, ensina um estudioso sobre o tema. Ele mostra um estudo da Universidade de Oxford cujo ponto central são as análises nos Estados Unidos. O levantamento aponta que 58% da população pensa que fake news são notícias fabricadas deliberadamente por meios de comunicação e 46% acham que isso é composto por notícias falsas, conteúdo publicado.
“Isso só foi permitido por causa das ferramentas digitais, antigamente isso era feito com carro de som, jornalzinho falso… A internet fez com que isso ficasse mais fácil, canal de YouTube, site fora do país…”, completa outro especialista ouvido pelo jornal. Ele cita o Marco Civil da Internet que, segundo ele, protege o dono da plataforma — que não pode ser responsabilizado pelos conteúdos publicados. “Não é exigido que o meio, tipo Twitter, identifique usuário. Não precisa de CPF. É um terreno fértil e muito perigoso”.
Saídas
Uma das saídas são as mudanças propostas passarem pelo Legislativo, como colocar uma identificação para a plataforma saber que tem algum humano atrás da conta. “‘Assim como não pode haver uma pessoa que nasce e não tira o CPF, não poderia ter essa falta de fiscalização dentro da internet”, complementa outro assessor do TSE. Para ele, não se trata de colocar o governo para ter acesso aos dados e conteúdos privados das pessoas, mas é necessário ter um controle mínimo.
Além da falta de informações sobre usuários, a desorganização sobre eventuais medidas punitivas também é observada pelos estudiosos que falaram com a reportagem. “Quando um crime é cometido em ambiente virtual, em Brasília, para prejudicar um cara em Fortaleza, onde esse crime aconteceu? No lugar do efeito ou no de causa? Não existe regra e isso pode atrasar demais as medidas judiciais cabíveis”, lembra um marqueteiro da campanha passada.
Riscos
Responsável pela gestão das eleições no Brasil, o TSE diz que tomou todas as providências possíveis para esclarecer os eleitores sobre os perigos da disseminação de conteúdo falso ou calunioso nos períodos eleitorais. Questionada pelo jornal, a Corte não respondeu como vai se antecipar no combate às fake news para as próximas eleições.
O tribunal limitou-se a dizer, que, em 2017, um conselho especial sobre internet e eleições foi criado com a incumbência de desenvolver pesquisas e estudos sobre normas eleitorais e a influência da internet nas eleições. Em nota, o TSE afirmou ter feito acordos com veículos de comunicação, plataformas on-line, serviços de apuração de fatos e entidades da sociedade civil para combater a reprodução constante de fake news. “As entidades envolvidas nesse trabalho se esforçaram para detectar, apurar e, conforme o caso, desmentir as inverdades o mais rápido possível”.
Em alguns casos, ressalta a Justiça, foram detectadas atividades criminosas e os responsáveis pela divulgação de fake news foram denunciados aos órgãos competentes pelo Ministério Público Eleitoral (MPE)”. O tribunal lembra que criou, ainda, uma página dedicada exclusivamente a desmentir as notícias falsas que circularam na internet durante as eleições gerais de 2018. No próximo dia 16, o TSE promove um seminário internacional sobre fake news e eleições.
Série de reportagens
Desde janeiro de 2018 o Correio publica uma série de reportagens sobre o poder das fake news contra a democracia. Os textos desvendaram o processo de produção das notícias falsas a partir de relatos exclusivos dos próprios criminosos. Três desses produtores, com garantias de anonimato, revelaram como funciona as engrenagens de uma campanha eleitoral. Mais de 50 personagens — entre políticos, juristas, integrantes do Ministério Publico e policiais — foram entrevistados. A partir dos textos é possível ampliar o debate sobre os riscos para a democracia, considerando a sofisticação dos mercenários e as dificuldades do Estado em combatê-los.