RELIGIÃO E POLÍTICA

Jéssica Dias, 30 anos, vendedora de churros em Brasília e fiel da Assembleia de Deus, diz que os projetos de educação e de transferência de renda do governo federal e a melhoria dos índices econômicos no país não tiveram efeitos significativos em sua vida. Para ela, moradora de Ceilândia, a região mais populosa do Distrito Federal, continua tudo igual. “Se melhorou, eu não vi nada. Se o governo vai ajudar os pobres, isso é bom. Mas a gente é igual São Tomé. Tem de esperar para crer”, afirma.

Dono de uma banca de produtos eletrônicos no centro de Brasília e seguidor da Igreja Batista dos Últimos Dias, Abraão Farias, 42 anos, morador da região do Guará, vê, ao contrário, melhoras na economia. “Os preços da carne e do feijão estão bons. Não tenho o que reclamar disso”, diz ele. Farias, porém, não cogita em hipótese alguma apoiar o governo e o PT: “Aí é diferente. Não sou a favor deles porque apoiam o homossexualismo, o lesbianismo e o aborto. Vão contra a palavra de Deus”.

Danilo Marques, 29 anos, é de família de evangélicos em São João do Meriti, na Baixada Fluminense, e frequenta a Igreja Batista do Éden. Estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é fã do presidente Lula, mas também não vê os evangélicos apoiando o presidente. “Nessas eleições para prefeito, os evangélicos na Baixada apoiaram candidatos bolsonaristas e conservadores. E esses candidatos venceram em onze cidades da região. Os fiéis seguiram o que os bispos e pastores recomendaram nos cultos”, conta.

Esses relatos são uma pequena amostra de como os fiéis evangélicos hoje enxergam a política e avaliam o governo federal. A gestão de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) evita explicitar essa preocupação, mas se incomoda, e muito, com a avaliação dos evangélicos sobre o governo. Deixa claro que vem procurando atrai-los, mas receia desagradar aos católicos e seguidores de outras crenças.

O presidente Lula pensa, no momento, até em ceder um ministério a uma mulher evangélica. São cogitados os nomes da deputada Benedita da Silva (PT-RJ), que é da Igreja Prebisteriana Betânia, e da senadora Eliziane Gama (PSD-MA), da Assembleia de Deus. Outras medidas já foram adotadas pelo governo em busca do apoio evangélico. Lula criou a Lei da Liberdade Religiosa no início do seu primeiro mandato, em 2003. Em setembro último, sancionou a lei que criou o Dia do Pastor Evangélico. Em 15 de outubro, foi a vez de ser oficializado o Dia da Música Gospel.

Essas iniciativas já parecem surtir algum resultado. Na cerimônia do Dia da Música Gospel (foto em destaque), um ferrenho bolsonarista, o deputado federal Otoni de Paula (MDB-RJ), elogiou o presidente. Ele é pastor da Assembleia de Deus e ex-vice-líder do governo Jair Bolsonaro na Câmara. Num passado recente, prometeu reagir a bala a uma eventual abordagem de petistas que ousassem chegar perto da casa e da família dele.

“Presidente, se aproxime sem reserva. Se aconchegue. Gostando ou não politicamente de Vossa Excelência, não temos outra opção pela Bíblia a não ser orar por Vossa Excelência”, afirmou o deputado e pastor, que apoiou Eduardo Paes (PSD) para prefeito no Rio, contra o bolsonarista Alexandre Ramagem (PL). “O senhor (Lula) é a prova de que se pode divergir politicamente durante as eleições, sem permitir, contudo, que as paixões eleitorais contaminem a gestão governamental, que deve olhar e cuidar da pluralidade, seja cultural ou religiosa desse imenso Brasil”, completou.

A maioria dos evangélicos no Brasil, 58%, é formada por mulheres e negros, segundo pesquisa do Datafolha de 2020, e também de baixa renda. O governo espera que seus projetos nas áreas sociais e de educação, o aumento do salário-mínimo e a diminuição do desemprego e da inflação sejam meios capazes de seduzir esses fiéis.

“O governo Lula, desde o primeiro dia, trabalha com uma compreensão daquilo que uma parte significativa do povo evangélico vive no Brasil. Tem pessoas da classe média e da classe alta, claro, mas uma grande parte é formada por pessoas que vivem em situação de muita dificuldade. Então, o presidente Lula recomenda que, com os programas criados pelo governo, a gente possa valorizar o trabalho das entidades envolvidas nesse processo, muitas ligadas às igrejas”, disse ao PlatôBR o ministro Wellington Dias, do Desenvolvimento, Assistência Social e Combate à Fome, que é católico, mas casado com uma evangélica, a deputada federal licenciada Rejane Dias (PT-PI), fiel da Igreja Batista Renovada. O casal ainda tem dois filhos evangélicos. “Aqui no ministério, particularmente, tomamos a iniciativa de ir ao encontro dessas lideranças em cada estado, que chegam aonde o governo tem dificuldade de chegar”, afirmou Dias.

O ministro Paulo Teixeira, do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, vê hoje um quadro na área social no país mais favorável. “Com o preço da carne mais baixo, a desoneração da cesta básica, o Bolsa Família e o auxílio financeiro para quem está no ensino médio, os pobres estão vendo que a sua vida melhorou, que estão sendo atendidos”, avalia Teixeira.

Porém, entre os evangélicos – segmento no qual se encontra parte da população mais pobre no país –, não há essa percepção. Uma pesquisa da Quaest, de setembro, mostrou que a aprovação dos evangélicos ao governo era de 42% em junho e caiu agora para 41%. A reprovação aumentou mais, foi de 52% para 55%. Na pesquisa anterior, o governo havia comemorado uma melhora: a aprovação dos evangélicos ao governo petista tinha subido de 39% para 42%. Entre a população geral, a avaliação positiva ao governo também caiu de 54% para 51%.

“Essas políticas públicas que estamos desenvolvendo vai dialogar muito com a necessidade da população lá na ponta, no bairro, na comunidade. Isso mudará a percepção”, torce outro ministro, Luiz Marinho, do Trabalho. “Quando assumi como prefeito em São Bernardo do Campo, em 2009, chamei os pastores, assim como os padres e as lideranças de candomblé, umbanda e todas as outras igrejas, para que todos se unissem a fim de que ninguém mais passasse fome na cidade. Houve uma ação conjunta com as igrejas”, lembrou Marinho.

O pastor Sergio Dusilek, da Igreja Batista Marapendi, na Barra da Tijuca, aprova o governo Lula, mas não é tão otimista quanto Marinho. Dusilek discorda da ideia de que o atendimento das reivindicações das camadas mais pobres da população seja suficiente para alinhar o apoio dos evangélicos ao governo.

“A leitura de integrantes do governo do PT é pela ótica marxista: se você melhora os índices econômicos, automaticamente o bolo vem de roldão para você. Só que no caso dos evangélicos, essa norma marxista não se aplica. Parte da leitura é fornecida pelas comunidades de fé. O pastor pode dar uma explicação sobre a melhora social que exclua o governo de sua participação. Há o entendimento de que Deus é tão poderoso que pode levar aquele ser nocivo a fazer algo de bom para o povo. Mas aí, a pessoa fez porque Deus quis, não por iniciativa dela própria. E aí não vai ter o efeito que o governo gostaria que tivesse”, observa Dusilek.

“O governo tem de ter uma aproximação real, de fato, com uma base evangélica, para que essa percepção e avaliação mudem”, prossegue o pastor. Dusilek declarou apoio a Lula às vésperas da eleição de 2022, em um ato em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio. Por isso, foi expulso da Convenção Batista Carioca e criticado nas redes sociais por colegas pastores que apoiavam Jair Bolsonaro.

A orientação petista

Os ministros de Lula têm tentado ajudar a melhorar a avaliação dos evangélicos sobre o governo. No final do ano passado, houve uma reunião de vários integrantes do governo no Palácio do Planalto para traçar uma estratégia de aproximação com esse segmento. Participaram do encontro, entre outros, o ministro Wellington Dias; Jorge Messias, advogado-geral da União e seguidor da Igreja Batista; Jaques Wagner (PT-BA), líder do governo no Senado, que é judeu; e Gilberto Carvalho, secretário nacional de Economia Solidária e ex-seminarista católico. A ação desse grupo, no entanto, não evoluiu, segundo um dos participantes.

Conversas e encontros de membros do governo e líderes evangélicos têm sido frequentes. Entre esses líderes religiosos está o pastor Ariovaldo Ramos, líder da Comunidade Cristã Renovada e coordenador da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito. Ramos foi chamado para um encontro de Lula com representantes de movimentos sociais e da sociedade civil, em abril, na Granja do Torto, uma das residências oficiais da Presidência da República. Nesse encontro, o presidente ouviu pedidos desses grupos.

O principal interlocutor do governo com os evangélicos, no entanto, é Messias, o advogado-geral. Ele representou Lula neste ano na Marcha para Jesus, em São Paulo, liderada pela igreja Renascer em Cristo, que reúne milhares de fiéis. Também representou o presidente em 2023, quando foi vaiado. Desta vez, foi poupado.

O governo tem cortejado ainda líderes evangélicos do campo conservador, como o deputado e pastor Cesinha Madureira (PSD-SP), da Assembleia de Deus do ramo Madureira, que também apoiou Jair Bolsonaro na última eleição presidencial. Cesinha mantém boas relações com o governo hoje. “Ele dialoga bem, conhece essas políticas de governo em relação aos religiosos. Não tem nenhum preconceito”, elogia Luiz Marinho. Cesinha Madureira, no entanto, estaria evitando elogios públicos ao governo, de acordo com a avaliação de petistas, para não entrar em atrito com colegas pastores críticos de Lula.

O governo Lula lançou, em maio, a campanha “Fé no Brasil”, focada nos avanços da economia, que não tinha ações dirigidas aos evangélicos, mas foi vista como mais uma forma de se aproximar do segmento. Apresentada em TVs, rádio, revistas, jornais, cinema e redes sociais, a campanha foi interrompida temporariamente, devido às enchentes no Rio Grande do Sul. O PT também vem desenvolvendo ações para tentar melhorar a relação. A Fundação Perseu Abramo, centro de estudos e formação política do partido, criou a “Cartilha Evangélica: Diálogo nas eleições”, divulgada em agosto, na qual alerta que os evangélicos não são todos iguais, lembrando as igrejas têm perfis distintos.

A cartilha recomenda que evangélicos nunca devem ser chamados de “fundamentalistas”. E ressalta ainda que famílias das periferias, em sua maior parte, são lideradas por mulheres negras e evangélicas, um perfil identificado com partidos progressistas, mas que hoje se aproximou de grupos políticos mais à direita. A fundação montou também um grupo de trabalho sobre religião para ajudar os militantes do PT a entenderem melhor o mundo evangélico, a partir de textos explicativos sobre doutrina e comportamento desses fiéis. Essas explicações serão repassadas aos candidatos do partido. O pastor Sergio Dusilek é um dos integrantes desse grupo.

Cruzada contra o PT

O PT, como outros partidos de esquerda, é rejeitado e combatido hoje por uma parte significativa de líderes evangélicos conservadores. É o caso de Silas Malafaia, da Igreja Assembleia de Deus Vitória em Cristo, e Marco Feliciano (PL-SP), deputado e fundador da Catedral do Avivamento, também ligada à Assembleia de Deus. No passado, os dois já foram próximos de Lula.

A Igreja Universal do Reino de Deus, do bispo Edir Macedo, por exemplo, já chamou Lula de “demônio” em campanhas políticas nos anos 1980 e 1990, mas depois aderiu a governos dele (entre 2002 e 2010) e da também petista Dilma Rousseff (de 2010 a 2014), até o seu impeachment. Depois, a Universal apoiou Jair Bolsonaro nas duas últimas eleições presidenciais, período em que voltou a atacar Lula. Mas agora mantém novamente boas relações. O partido ligado à Universal, o Republicanos, comanda o Ministério dos Portos e Aeroportos, embora o ministro, Silvio Costa Filho, não seja ligado à igreja.

A bancada evangélica na Câmara é majoritariamente contrária a Lula. Porém, há líderes evangélicos hoje próximos de posições do governo e de Lula, como os pastores Caio Fábio, do Movimento Caminho da Graça, e Ed Renné Kivitz, da Igreja Batista da Água Branca (Ibab), além de Dusilek e Ariovaldo Ramos, entre outros. Esses, porém, são minoria no meio evangélico.

‘Ninguém fechou igrejas’

Wellington Dias ressalta que o governo procurar manter uma boa relação com a Frente Parlamentar Evangélica na Câmara e no Senado. “É isso o que buscamos. Não há prova de que em algum lugar no país se fechou igrejas ou se fez qualquer lei que venha a afrontar evangélicos. As vezes, pagamos pela posição de um parlamentar individualmente, que apresenta uma proposta ou posição polêmica, por iniciativa própria. A partir da determinação do Executivo, sempre trabalhamos com o respeito ao direito ao culto e à liberdade religiosa. Sobre temas como o aborto, por exemplo, o presidente sempre fez a defesa da vida e defendeu o cumprimento do que está na Constituição”, defende o ministro.

O teólogo protestante Fábio Py, professor do programa de pós-graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense, concorda que os evangélicos e os chamados “sem religião” fazem parte das chamadas camadas populares, que realmente se beneficiam de projetos sociais. Mas faz uma ressalva: “Cada vez que o governo diz que está se aproximando dos evangélicos, mais ele acentua essa diferença e essa distância”. Py acredita, no entanto, que os evangélicos hoje estariam “se acalmando em relação ao governo Lula” – e diminuindo o tom de suas críticas. No Palácio do Planalto, é essa também a crença dominante entre figuras próximas ao presidente.