São Paulo 


Um ex-missionário evangélico deverá assumir uma das áreas mais sensíveis da Fundação Nacional do Índio (Funai): a Coordenadoria de Índios Isolados e de Recente Contato. O antropólogo Ricardo Lopes Dias —que durante cerca de uma década atuou na evangelização de indígenas por meio de uma organização chamada Missão Novas Tribos do Brasil (MNTB)— ainda não foi nomeado oficialmente, mas confirmou a diversos veículos da imprensa que havia recebido o convite e o aceitaria. Se for efetivado, ele poderá tomar decisões que impactam a vida de ao menos 114 povos indígenas isolados que vivem no país. A indicação de Ricardo Lopes Dias ao posto provocou críticas de entidades indigenistas, que acusam o presidente Jair Bolsonaro de ceder aos interesses dos evangélicos. Elas temem ainda uma mudança na política de não contato com os povos isolados, adotada após o fim da ditadura —o regime buscava tais indígenas ativamente, o que acabou dizimando diversas etnias por conta de doenças para as quais não tinham imunidade.


Ricardo Lopes Dias afirmou, em entrevista ao jornal O Globo, que sua atuação na coordenação de povos isolados será técnica. “Não vou evangelizar os índios”, prometeu. Ele substituirá Paula Wolthers de Lorena Pires, antropóloga com mestrado em antropologia social pela Universidade de São Paulo, que há oito anos atuava com diversos povos indígenas na Funai. Lopes Dias não faz parte dos quadros da fundação e só poderá assumir o cargo porque, na última quinta-feira, o presidente do órgão federal indigenista, Marcelo Xavier da Silva, alterou o regimento interno para permitir que pessoas que não sejam servidoras de carreira assumam cargos comissionados de comando. Marcelo Xavier também não é bem visto por indígenas e entidades indigenistas. Delegado da Polícia Federal, ele foi indicado à Presidência da Funai por membros da bancada ruralista no Congresso Nacional.

A possível nomeação de Lopes Dias se soma a uma série de decisões políticas e declarações polêmicas do presidente Jair Bolsonaro, que tem adotado uma postura integracionista e contrária à demarcação dos territórios, um direito garantido pela Constituição. Recentemente, Bolsonaro chegou a dizer que “o índio está evoluindo e cada vez mais é um ser humano igual a nós". Desde que assumiu o poder, ele tem tomado uma série de decisões que vão de encontro aos direitos dos povos indígenas. Há pouco mais de dez dias, 47 povos indígenas se reuniram no Pará e assinaram um manifesto antigenocídio no qual acusam o Governo de colocá-los em risco.

Agora, a possível nomeação de Ricardo Lopes Dias para um cargo tão sensível na Funai coloca mais lenha na fogueira. Nos dez anos em que integrou a Missão Novas Tribos do Brasil —entre1997 e 2007—, o antropólogo atuou na evangelização de indígenas do Vale do Javari, no Amazonas. Esta é uma das maiores terras indígenas demarcadas do Brasil e também a que concentra o maior número de registros de povos isolados no mundo. A entidade evangelizadora é o braço nacional do movimento missionário americano New Tribes Mission, atualmente chamado Ethnos360. A organização é acusada de dizimar quase um terço do povo zoé, no Pará, pelo contato com vírus contra os quais os indígenas não tinham proteção imunológica.

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) repudiou a indicação de Lopes Dias. Em nota, a entidade disse que o Governo dá evidentes sinais de abandono à perspectiva técnico-científica para adotar uma orientação “neocolonialista e etnocida, de atração e contato forçados, com o uso do fundamentalismo religioso como instrumento para liberar os territórios destes povos à exploração por grandes fazendeiros e mineradores". E diz temer que, caso haja uma nova política de contato forçado, ela possa provocar novos genocídios no país.

Já a Associação dos Povos indígenas do Brasil (Apib) afirma que a nomeação de Lopes Dias cede a interesses evangélicos, uma das bases do Governo Bolsonaro, e repudia a escolha dele para coordenar os povos indígenas isolados. “Há inúmeras situações onde o contato forçado provocado por grupos missionários, inclusive ligados à MNTB, teve como rápida consequência um elevado número de mortes por doenças”, diz a nota da entidade. “Há um rápido desmonte das políticas públicas direcionadas aos povos indígenas por parte do Governo Bolsonaro, por meio da submissão da política indigenista a interesses de grupos religiosos que dão suporte ao seu Governo e, em muitos casos, a grupos ruralistas interessados pelas terras tradicionalmente ocupadas por esses povos”, critica a entidade.

A Survival International, um movimento global pelos direitos dos povos indígenas, também criticou a escolha de um antropólogo que atuou em “uma das organizaçãos missionárias mais extremistas do mundo”. “É como colocar uma raposa no galinheiro. É uma agressão, uma declaração de que eles querem entrar em contato com povos indígenas isolados à força, o que os destruirá”, afirmou Sarah Shenker, que integra a ONG.