Revelação dos EUA sobre execuções no governo Geisel pode levar à revisão da lei, segundo juristas. Mas é contestada por militares e não abala as Forças Armadas, afirma Jungmann
A revelação em memorando da Agência Central de Inteligência (CIA) dos EUA, sobre a política de Estado da ditadura militar (1964-1985) para a execução de opositores do regime, causou grande repercussão nos meios jurídico, político e militar do país. Na avaliação de juristas, historiadores e parlamentares com atuação no combate à tortura e a crimes contra a dignidade humana, a divulgação do documento deve trazer consequências para a revisão da Lei da Anistia, que está pendente de julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Em que pese outros países da América do Sul tenham, num primeiro momento, anistiado torturadores, o Brasil foi o único em que nenhum deles foi punido. A divulgação do documento é criticada pelos militares. O presidente do Clube Militar, general Gilberto Pimentel, disse que a publicação é fantasiosa e eleitoreira e pretende prejudicar os candidatos militares. O presidente Michel Temer disse desconfiar do documento e o ministro da Segurança Pública e ex-ministro da Defesa, Raul Jungmann, afirma que o governo não tem conhecimento disso e que a sua publicação não abala as Forças Armadas
Em abril de 2010, o STF rejeitou pedido de revisão da Lei da Anistia, em ação proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), para que se anulasse o perdão dado aos agentes do Estado acusados de praticar atos de tortura durante o regime militar. A entidade apresentou recurso ainda não julgado contra a decisão. O Ministério Público Federal (MPF) também pressiona para que seja anulado o perdão aos torturadores. A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu ao STF que desarquive e julgue o mérito de uma reclamação que levou à suspensão de ação penal contra militares suspeitos de envolvimento no desaparecimento do deputado federal Rubens Paiva durante a ditadura. Na Justiça, há também várias ações propostas pelo MPF contra torturadores que aguardam julgamento, por essa indefinição do STF.“O que é dramático, estarrecedor neste documento é a banalidade do mal, para usar a expressão de Hannah Arendt”, sustenta Pedro Dallari, professor titular de direito internacional da Universidade de São Paulo (USP), último coordenador da Comissão Nacional da Verdade (CNV), que concluiu os seus trabalhos em 2014 apontando 377 agentes responsáveis por 434 mortos e desaparecidos ao longo da ditadura. “O extermínio de brasileiros é tratado com a maior naturalidade, como se fosse política pública”, assinala Dallari. “A comissão já havia chegado a esta conclusão. Mas este novo documento ilustra com clareza o que a ditadura fez, a execução de pessoas como política sistemática de Estado, a banalização de conduta ilícita e inaceitável”, acrescenta.
Para a historiadora e pós-doutoranda pela Universidade Federal Fluminense, Isabel Leite, o documento reafirma que tortura e aniquilação de opositores foram institucionais, ainda que muitos, talvez por desconhecimento da história, neguem até a existência da ditadura. “É uma revelação que inclusive desconstrói a imagem do presidente-ditador Ernesto Geisel como uma figura da ala moderada do Exército, que estaria disposto a controlar os representantes da chamada “linha dura”, garantindo transição para a democracia de modo mais tranquilo possível”, afirma Isabel. “Além de ser assustador pela forma fria como se trata a questão de aniquilação de inimigos do regime, esse documento deveria servir de base para o STF rever a Lei de Anistia, em vigor desde 1979”, afirma.
CONTINENTE Na América do Sul, antigas ditaduras condenaram os torturadores. “No Chile, o ditador Augusto Pinochet anistiou todos os militares envolvidos em crimes de tortura em 1978, no entanto, mesmo com a lei em vigência, no fim do regime, 250 militares foram punidos”, afirma Isabel. No caso argentino, em 1983, ditadura assistiu ao nascimento da Conadep, espécie de Comissão da Verdade, base para a abertura de julgamentos de militares. “Nos anos 2000, sob os governos Kirchner, outros tantos processos foram reabertos e militares punidos. Em ambos países – Chile e Argentina – generais-presidentes (Pinochet e Videla) foram presos”, diz Isabel.
Último país do Cone Sul a instituir uma comissão da verdade, o seu resultado final, por si, já valeria a revogação da Lei da Anistia, defende a historiadora. “No entanto, por ser o único país da América do Sul onde os militares têm alto grau de independência e agem como veto players, desde a transição, há uma atuação incisiva destes em assuntos relativos à ditadura”, diz ela, lembrando que no Brasil, diferentemente do processo argentino, houve transição democrática pactuada, tutelada pelos militares. “Esta conciliação, que naquele momento foi fundamental para a abertura, ainda hoje serve de desculpa para a não revogação da lei”, completa Isabel.
Para o deputado federal Nilmário Miranda (PT), estender a Lei da Anistia aos torturadores é uma excrecência jurídica. “Este documento revela mais um episódio estarrecedor: o presidente diz que pode matar os opositores, mas consulta antes João Baptista Figueiredo. Isso não existe em lugar nenhum do mundo. Execução extrajudicial ou desaparecimento forçado estão no rol dos crimes humanitários”, diz o parlamentar. Opinião semelhante manifesta o advogado Maurício Brandi Aleixo: “Essa lei acabou equiparando o sofredor com o causador do sofrimento, o que é uma aberração lógica. Não se pode evidentemente colocar num mesmo patamar o carrasco, com a mão do Estado, e a vítima”.
REVISÃO Na avaliação de Pedro Dallari, de 2010 para cá, quando o STF rejeitou o pedido de revisão da Lei da Anistia, houve mudança na composição da Corte, o que pode repercutir no destino da causa. Saíram três ministros que votaram pela constitucionalidade da lei – Cezar Peluso, Eros Grau e Ellen Gracie – e um, Ayres Britto, que votou pela inconstitucionalidade”. De lá para cá, foram empossados cinco ministros: Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Edson Fachin, Rosa Weber e Alexandre de Moraes. Em 2011, o próprio Supremo autorizou a extradição do major argentino Norberto Raul Tozzo, acusado de participar de tortura e morte de 22 presos políticos em 1976, episódio conhecido como Massacre de Margarita Belén. Entendeu, assim, que devam ser punidos os agentes responsáveis pelos sequestros praticados na época, cujas vítimas nunca foram encontradas. E no plano internacional, houve, em 2011, sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso da Guerrilha do Araguaia, entendendo que o Brasil deve processar os responsáveis pelos crimes cometidos durante a ditadura.
O que dizem os arquivos do governo americano
O memorando, agora tornado público pelo Departamento de Estado dos EUA, data de 11 de abril de 1974, é assinado pelo então diretor da CIA Willian Colby e endereçado ao secretário de Estado dos EUA na época, Henry Kissinger. Nele, Colby detalha que Ernesto Geisel, ao assumir o poder, foi informado de que 104 pessoas haviam sido mortas em 1973 pelo governo Emílio Garrastazu Médici (1969-1974).
Na ocasião, o Centro de Informações do Exército (CIE), órgão responsável pela política de tortura e assassinatos de adversários políticos da ditadura, recebeu autorização de Geisel para manter o método, mas restrito aos “casos excepcionais”, que envolvessem “subversivos perigosos”. Além do aval do Palácio do Planalto, as execuções também deveriam ser precedidas de consulta ao então diretor do Serviço Nacional de Informações (SNI), general João Baptista Figueiredo, sucessor de Geisel na Presidência da República, entre 1979 e1985.
O Departamento de Estado americano tirou do memorando a classificação de confidencial em 2015, ao lado de outros 404 documentos envolvendo oito países da América do Sul. Eles cobrem o período entre 1973 e 1976, durante as presidências dos republicanos Richard Nixon e Gerald Ford. Foi descoberto pelo pesquisador Matias Spektor, professor de Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV). O memorando tem o número 99 e é da gestão Nixon.
Temer defende Geisel
Brasília – O governo brasileiro saiu em defesa das Forças Armadas e reagiu com desconfiança ao memorando escrito em 1974 pelo então diretor da Agência Central de Inteligência (CIA), dos EUA, que afirma que o ex-presidente Ernesto Geisel havia dado autorização para execuções de “subversivos perigosos” durante o seu governo, transformando essas execuções em política de Estado. “Nesses tempos de delações, de disse que disse, aprendi que é preciso ter muito cuidado com informações dessa natureza”, afirmou o presidente Michel Temer em entrevista ao jornal Estado de S. Paulo. Ao dizer que, ao receber a informação, “achou a história muito estranha”, o presidente declarou ter chamado sua atenção o fato de as revelações virem de fora do país: “Os documentos não são nacionais, são da CIA, entidade estrangeira. Nem tudo o que a CIA diz é necessariamente verdade, é uma verdade absoluta.”
Temer também avaliou que “não há um só documento, um só registro, um só depoimento dos envolvidos” corroborando a versão da CIA, que agora vem a público pelo pesquisador da FGV Mathias Spector. Em seguida, Temer acrescentou: “E a gente sabe como é. Essas coisas sempre acabam sendo faladas. Como nunca foram faladas aqui no Brasil até agora?” Temer disse que, pela sua própria experiência, sabe que “presidentes não conseguem acompanhar tudo o que acontece lá embaixo, no governo”. Por isso, indagou: “Será mesmo que o general Geisel saberia disso, teria autorizado isso?”
Ele citou, inclusive, sua versão sobre a frase atribuída ao então vice-presidente da República, Pedro Aleixo, ao discordar da aplicação do AI-5 em 1968 e tentar substitui-lo pelo instrumento do estado de sítio: “Não tenho medo do AI-5, tenho medo do que o guarda da esquina irá fazer com esse ato”. Além de manifestar dúvidas quanto à veracidade da informação que chegou à CIA, Temer também tentou fazer uma defesa subjetiva de Geisel: “Isso não combina com o legado do presidente, conhecido pelo empenho em promover a abertura política, a volta à democracia”.
Para o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, a divulgação dos documentos da CIA não afeta o “prestígio” das Forças Armadas. Ex-ministro da Defesa, Jungmann disse que o governo ainda não teve acesso ao documento de forma oficial, mas afirmou que alguma medida deve se tomada. “O governo não tem conhecimento desses documentos, não estamos desconsiderando (o documento da CIA), mas precisamos ter acesso de forma oficial. O prestígio das Forças Armadas permanece nos mesmos níveis. As Forças são um ativo democrático, isso não é tocado por uma reportagem”, afirmou.
Jungmann foi evasivo, no entanto, quando questionado sobre quais ações efetivamente devem ser tomadas pelo governo brasileiro. “Não tivemos acesso a documentos oficiais. Não é minha área, não é decisão minha. Alguma medida deve ser tomada, mas não é da minha área. Não sou mais ministro da Defesa, quem deve tomar essa decisão são os responsáveis pela área”, completou.