“Quando me encontro em momentos difíceis/Mãe Maria vem até mim/ Dizendo palavras sábias/ Deixe estar”. A letra de “Let It Be” é uma das muitas músicas que poderiam fazer parte do repertório para os dias de aflição que estamos vivendo com a pandemia do coronavírus. Presente no álbum homônimo, a canção dos Beatles completa meio século em 8 de maio, data em que o LP chegou às lojas.

Muita polêmica, desânimo e brigas marcaram a gravação do disco, o último do quarteto de Liverpool, que se separou exatamente em 1970. “O álbum é, na verdade, uma mistura de tudo, de sentimentos bons a ruins”, observa Aggeu Marques, um dos grandes especialistas em Beatles no país, organizador do BH Beatle Week e integrante de grupos como Sgt. Peppers Band, Hocus Pocus e Yestardays.

Ele observa que, apesar do “climão” nos bastidores, o resultado ficou muito acima da média, com Paul McCartney vivendo o auge na criação de baladas. É dele a autoria de “Let It Be” e “The Long and Winding Road”, ambas na lista das mais icônicas da maior banda de rock da história. “E (John) Lennon compôs ‘Dig a Pony’, que ele não gostava muito, mas é legal, e ‘One After 909, que é do início da carreira deles”.

Para Marques, ao contrário do que muita gente frisa, é possível perceber nas faixas do disco que os beatles se divertiram também. “É um álbum muito complexo, talvez o mais heterogêneo do grupo, o mais mal explicado, porque até ‘Magical Mistery Tour’ (1967), apesar de ter um lado A e B bem distintos, era homogêneo para a época. É o que o torna diferente de todos os outros”, analisa.

O crítico Rodrigo James, do site Esquema Novo, tem outra avaliação. Segundo ele, pela qualidade do disco, é possível entender a razão de o projeto ter sido engavetado e lançado posteriormente a “Abbey Road”, que, para muitos, é o derradeiro trabalho dos Beatles (foi o último a ser finalizado em estúdio). “Com o quarteto totalmente de saco cheio um do outro, seria complicado ter um trabalho coeso”, assinala.

James lembra de uma cena do documentário “Let It Be”, realizado em conjunto com a produção do disco e que mostra as sessões de gravação, em que George Harrison responde a McCartney, já contrariado, que faria tudo que ele mandasse. “Foi esse o tom do disco, que é, na minha opinião, extremamente irregular. Das 12 faixas, você tem aí uns 70% que são boas e outros 30% irregulares, algo fora do padrão dos Beatles”.

 

APPLE CORPS/DIVULGAÇÃO / N/A

 

bitous.jpg
Uma das melhores cenas do documentário de Michael Lindsay-Hogg é quando os Bealtes fazem show no telhado de um prédio
 

 

 

Separação foi  um grande baque para Paul McCartney

Um dos motivos, de acordo com James, para os integrantes ficarem às turras seria o filme. “Acredito que tenha atrapalhado o processo no estúdio, porque eles tinham que ficar interpretando para a câmera. Quando viram, já tinham perdido o rumo da história, transformando aquela gravação num grande estorvo para eles, que já estavam focados numa vida fora dos Beatles”, conjectura.

Em 2003, McCartney lançou “Let It Be... Naked”, uma reeedição do material, “sem orquestrações e mais crua”, segundo o crítico. Para muitos, supera o disco original. “São as versões como deveriam ser lançadas. Ele é mais verdadeiro, mostrando mais a realidade do que foi a gravação”, destaca Marques. Tanto para o músico quanto o crítico, o produtor Phil Spector também teve a sua parcela de culpa.

“O grande erro dele foi tentar modificar algumas coisas. Ele fez coisas bonitas, como as cordas em ‘Winding Road’ e os metais em ‘Let It Be’. Mas não fez nenhuma menção a George Martin, que produziu todos os outros discos dos Beatles e que supervisionou boa parte de ‘Let It Be’”, critica Marques. “Phil era conhecido por ter uma mão muito forte, imprimindo a marca dele. Era uma pessoa muito difícil de trabalhar”, acrescenta James.

Em shows feitos no ano passado, Marques pôde tocar “Let It Be” na íntegra, na ordem do disco, chegando a conclusão que o trabalho representa o auge de McCartney como compositor nos Beatles. “Ele estava numa fase muito fértil e colocou tudo naquele momento. A separação acabou sendo um baque muito grande para Paul. Enquanto Lennon e Harrison lançaram dois discos solos excelentes, ainda em 1970, ele só voltou a forma em 1973, com ‘Band on Run’”.