Ação executada pelo Servas em parceria com a Associação Cultural Sempre um Papo e a Seap leva conhecimento e leitura qualificada a unidades prisionais do Estado
"A Literatura pede passagem”. A frase, tatuada no braço de Paulo Fernandes, voluntário do projeto Rodas de Leitura, não podia ser mais factível: por meio dele, a literatura de fato pede passagem e, mais que isso, ultrapassa as grades do Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto, no bairro Horto, em Belo Horizonte, e chega a um grupo de detentas, que, ansiosas, aguardam a realização de mais uma Roda de Leitura.
Idealizado pelo Serviço Voluntário de Assistência Social (Servas), em parceria com a Associação Cultural Sempre um Papo e a Secretaria de Estado de Administração Prisional (Seap), o projeto tem como objetivo estimular o hábito de ler e ampliar horizontes para as pessoas privadas de liberdade por meio da literatura.
As rodas são oferecidas a turmas de até 20 pessoas em presídios da Região Metropolitana de Belo Horizonte. É trabalhado um livro por mês, e, ao fim desse período, os participantes devem apresentar uma resenha crítica da obra, que é avaliada por uma banca composta por três corretores. Se o interno obtém nota acima de 6, ele tem a possibilidade de ter até quatro dias de pena remidas – em um ano, ele poderá ter até 48 dias de remição, de acordo com a Recomendação nº 44/2013 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Os encontros, com duração de até 2h, são realizados semanalmente nas penitenciárias, e, na Estevão Pinto, é conduzido por Paulo Fernandes.
Ele leva suas formações de ator e filósofo e ainda as especializações nas áreas de psicopedagogia, direitos humanos e cidadania para dentro da prisão, mas garante: a doação de seu trabalho e tempo configurou-se, na verdade, em um presente para ele mesmo.
“Eu era criança e lembro que meu irmão mais velho ficava lendo aqueles livros maravilhosos, eu pedia emprestado e ele negava. Então eu esperava ele sair para o trabalho e pegava tudo escondido. Virava noites lendo. Meu amor pela literatura começou aí, e poder compartilhar esse universo com essas mulheres é maravilhoso. Com certeza está sendo transformador”, conta.
Nos primeiros quatro meses de trabalho no complexo feminino, Fernandes trabalhou apenas com livros de autoria feminina.
“Só mulheres fortes: Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Carla Madeira e Lya Luft. Cada uma dessas obras traduzia questões de vivências que achei importantes para o trabalho no presídio. Elas (as detentas) se identificavam ou com a escrita, ou com a autora em si, ou com o teor dos livros. Elas se envolvem de verdade com o projeto, e isso é muito bonito”, relata.
Durante uma das Rodas de Leitura, da qual a Agência Minas Gerais pôde participar, era trabalhado o livro “O Amargo e o Doce”, de Fuad Noman, e, para ampliar a discussão, foi feita a leitura do livro infanto-juvenil “Tal pai, tal filho”, de Georgina Martins.
A intertextualidade entre os dois foi apontada pelas próprias detentas, que falaram sobre os temas presentes nas obras, entre eles aceitação, estereótipos, preconceitos, e também as diferenças entre elas. A discussão, de alto nível, foi complementada com relatos de vivências pessoais e de interpretações subjetivas a respeito dos livros.
Projeto libertador
O Rodas de Leitura, que começou a ser implantado em 2017, hoje está ativo em três unidades prisionais do Estado – além da Estevão Pinto, funciona também no Presídio de Caeté e no Presídio Promotor José Costa, em Sete Lagoas. Mas já passou por 11 penitenciárias mineiras. O projeto impactou cerca de 400 detentos, envolveu 32 voluntários e cerca de 75% das resenhas feitas foram aprovadas.
“Quando o projeto nasceu e foi encaminhado para mim, a princípio tive muito receio, não acreditava que ele faria diferença na vida das pessoas. Depois, fui percebendo o quanto a literatura poderia libertar a mente e o coração dos detentos, transformar seus olhares. O Rodas de Leitura deixou de ser sobre remição de pena para ser um projeto de transformação de olhares, quem sabe de vidas. É libertador e humanizador – não só para os presos, como para todos nós que participamos dele”, afirma, orgulhosa, a gestora do projeto no Servas, Patrícia Velloso.
“Pensamos em abrir o projeto com uma contação de histórias, para que os internos tivessem interesse em participar, vissem o quanto a leitura pode ser libertadora para eles. No primeiro, convidei o Paulo, que é contador de história, para vir. Ele veio e não saiu mais, quis participar ativamente”, lembra Patrícia.
Atualmente, os voluntários são selecionados a partir de chamados feitos pelo Servas, divulgados em diversos meios. “Já teve fila de voluntário, gente que ficou de fora porque não tínhamos mais vagas”, conta a gestora.
O projeto conta, ainda, com doação de livros para a recomposição do acervo das bibliotecas das penitenciárias. Na Estevão Pinto, por exemplo, foram doadas 300 obras, já catalogadas, e outras 300 que serão catalogadas pelas próprias presas, que, para tanto, receberam curso de qualificação.
O voluntário Paulo Fernandes com as detentas no Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto, na capital (Crédito: Carlos Alberto/Imprensa MG)
Experiência que transforma
Uma das propostas do projeto é também a visita dos autores das obras trabalhadas às Rodas de Leitura. Desde 2016, já participaram dos encontros diversos escritores, como Xico Sá, Leonardo Boff, Frei Betto, Humberto Werneck, Luiz Fernandes de Assis e Zulmira Furbino.
Em junho deste ano, a escritora Carla Madeira, que teve o livro “Tudo é Rio” trabalhado nos presídios, esteve na unidade prisional de Caeté. Lá, ela ouviu, emocionada, o depoimento de M.M.S. “Eu tinha um rancor muito grande pela mãe do meu filho, e, depois que eu li o livro, eu entendi o que é perdoar. O livro me fez, na minha mente, perdoar ela. Ela esteve aqui com o meu filho e eu já a tratei de uma outra forma. Como se diz, é um fluxo, a água leva. Tudo é rio”, explicou.
Para a autora, a experiência superou suas expectativas. “Fiquei muito comovida de ver essas pessoas se apropriarem da leitura, falarem com propriedade dos sentimentos delas, da questão do perdão, de refazer a vida. Saí de lá diferente de como entrei, porque não tinha noção do poder do livro, do que ele representaria", afirma Carla.
No Complexo Penitenciário Feminino Estevão Pinto, S.S, detida há dois anos, conta que já leu 11 livros pelo projeto, mas que perdeu a conta de quantos mais leu ‘extraoficialmente’ desde que participa.
“As Rodas de Leitura me ajudaram a resignificar a distância que estou da minha família e a suprir essa questão da saudade. Porque o livro te liberta, te transporta para outros lugares, outros mundos, mesmo privada de liberdade. Quero usar esse tempo aqui a meu favor. Por exemplo, no Tudo é Rio, da Carla Madeira, tem a personagem Luci, uma prostituta muito sagaz e sedutora, que não consegue ouvir um não, ela fica atordoada. Esse livro me fez pensar sobre isso, me ensinou a ouvir os nãos, porque aqui a gente convive com eles”, destaca a detenta.
“O livro da Lya Luft, Perdas e Ganhos, também me marcou muito. Ele te faz entender o que realmente é importante e o que é fútil, a questão da perda e do ganho. Transformou minha forma de ver as coisas e de agir aqui dentro. Aqui, é o tempo todo você ponderando o que é perda e o que é ganho. Se você se exalta, você perde sua razão, você se atrasa. A literatura me fez entender isso. O Paulo (voluntário) trouxe mulheres fortes, que caem, mas não ficam lá chorando com sentimento de autocomiseração, sabe? Não. A gente levanta, sacode a poeira, ergue a cabeça e prossegue. Avante. Essa é minha meta. Avançar. Retroceder nunca”, finaliza S.S.
Tema de tese
Em abril, o professor Alexandre Amaro passou a integrar a equipe de voluntários do Rodas de Leitura. Formado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ele já estava há um ano trabalhando em sua tese de doutorado pelo Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG), mas o impacto do projeto fez com que mudasse o objeto de pesquisa.
“Dou aula há mais de 20 anos, trabalhando tanto em escolas privadas quanto públicas, e com certeza nunca fiz algo tão intenso na área de educação como o Rodas. É impossível você passar por um projeto desse e sair igual”, comenta.
“E, neste contexto de crise penitenciária em que vivemos, esta é uma temática muito mais relevante. Então comecei a tese do zero de novo. Minha proposta é buscar entender em que medida essas ações, pautadas pela leitura, pela análise e pela literatura nesses ambientes, têm algum tipo de efeito tanto durante o tempo em que eles estão dentro da cadeia como também posteriormente a isso”, completa Amaro.
O professor diz ser interessante a existência de um pacto dentro do projeto, que é o de não se aber o que aquelas pessoas fizeram para estarem ali. "Então eu procuro não julgar. E, com isso, eu tenho me tornado uma pessoa mais flexível, com a realidade, com o mundo. Ou seja, de muitas formas eu já fui transformado pelo Rodas”, acentua.
Amaro relembra, ainda, o marcante depoimento de M.M.S. (citado acima na matéria), durante visita da escritora Carla Madeira no Presídio de Caeté.
“Ele falou sobre o perdão, sobre ter deixado de odiar uma pessoa. Se isso aconteceu de fato, o projeto inteiro já terá valido a pena. O único livro que esse detento havia lido na vida tinha sido na infância! Então o Tudo é Rio, da Carla Madeira, era a primeira obra que ele estava lendo na vida adulta, e ele já tem lá seus 40 anos. E de repente ele encara o livro. Não se trata de mudar a vida dessas pessoas, mas de, por meio da literatura, oferecer possibilidades de reinterpretação das coisas, reorganizar seus pensamentos, sua compreensão”, finaliza Amaro.