ADOLESCENTES EM PERIGO

A morte de Dorca, de 12 anos, em decorrência de complicações de uma gestação, no domingo (13/7), abalou os indígenas da etnia Warao e expôs um quadro por si só trágico, que ultrapassa os limites da comunidade de origem venezuelana instalada no Bairro Citrolândia, em Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Conforme a Secretaria de Estado de Saúde, neste ano, até terça-feira (15), as unidades médicas que atendem pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em Minas Gerais fizeram 245 partos de adolescentes com idades entre 12 e 14 anos, mesma faixa etária de Dorca. Além de ocorrerem em contexto de estupro de vulnerável, segundo o artigo 217-A do Código Penal Brasileiro (leia texto sobre a lei), essas gestações implicam fortes riscos à vida das meninas e dos fetos, explicam especialistas.

Dorca deu entrada no Centro Materno-Infantil do Hospital Regional de Betim na sexta-feira passada (11/7) com 32 semanas de gestação e em estado grave, após sofrer uma série de convulsões durante a noite anterior. No hospital, o diagnóstico inicial apontou uma pré-eclâmpsia – condição grave de hipertensão na gestação. Uma tomografia revelou um sangramento intracraniano. A menina morreu dois dias depois de passar pelo parto de emergência. O bebê resistiu e seguia internado até ontem.

De acordo com dados do governo de Minas, em 2024 foram realizados 14 partos de meninas da mesma idade da jovem warao. No ano anterior, foram 20 procedimentos. Em 2025, até 15 de julho, quatro. Conforme as idades avançam, os números também crescem. Este ano, 35 gestações de adolescentes de 13 anos foram registradas, além de outras 206 de meninas de 14.

Na capital mineira, o cenário é semelhante ao restante do estado. Segundo levantamento da Secretaria Municipal de Saúde, este ano, os hospitais públicos já computaram 36 nascimentos de bebês cujas mães tinham até 14 anos. Já em Betim, palco da tragédia de Dorca, o hospital regional – que atende 12 municípios –registrou sete partos de gestantes nessa faixa etária.

Apesar dos números alarmantes, quando analisados os últimos anos, houve uma redução das ocorrências de gravidez nessa faixa etária. Em Minas, entre 2023 e 2024 foi registrada queda de 13,7% das gestações precoces que não foram interrompidas – a lei permite o aborto nesses casos, por se tratar de estupro de vulnerável. Há dois anos, houve 748 partos, e no período seguinte, 645. Os dados referentes aos últimos dois anos incluem gestações de crianças de 10 e 11 anos.

Em Betim, a Polícia Civil de Minas Gerais, investiga o estupro sofrido pela adolescente que morreu por complicações do parto. Ao EM, a família afirmou que o pai do bebê pertence à comunidade e tem 22 anos. No entanto, há informações de que o jovem teria 16. Independente da idade, o artigo 217-A do Código Penal Brasileiro estabelece que a conjunção carnal, ou seja, manter relação sexual, ou a prática de ato libidinoso com menores de 14 anos configura estupro de vulnerável . De acordo com o texto, a pena para o crime é de prisão de 8 a 15 anos.

A advogada criminalista Thalita Arcanjo, explica que o crime existe e é imputado ao autor do estupro, independentemente de ter ou não havido consentimento entre os envolvidos. Além disso, ela afirma que caso o suspeito seja menor de idade, entre 12 e 18 anos incompletos, ele responde por ato infracional análogo ao estupro de vulnerável. Nesses casos, a pessoa deverá responder conforme estabelecido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a medida socioeducativa será dosada de acordo com o contexto do crime: se houve emprego de violência, requintes de crueldade, ou se os menores de idade estavam em um relacionamento e a relação foi “consentida”.

Se os envolvidos forem menores de 12 anos, são inimputáveis, ou seja, não estão aptos para responder pelo crime. Apesar disso, os menores e suas famílias podem ser acionados pelo Conselho Tutelar, que pode impor medidas socioeducativas. “No direito, quando tratamos de casos de estupro de vulnerável é importante entender o contexto. A lei aponta que sempre vai haver crime, independentemente da relação dos envolvidos ou da permissão dos pais”, diz Thalita.

Além das crianças e adolescentes, o Código Penal também classifica como vulnerável qualquer pessoa que não tenha o necessário discernimento para a prática da relação sexual ou do ato libidinoso. Isso pode acontecer devido a enfermidade ou deficiência mental, ou quando, por algum motivo, a pessoa não possa se defender, como em caso de a vítima estar sob efeito de alguma substância entorpecente ou desacordada.

Crime e prevenção

Segundo o painel de monitoramento de crimes violentos da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública (Sejusp), este ano, até maio, foram computadas 452 ocorrências de estupro de vulnerável consumado no estado. Nos 12 meses de 2024, os registros somaram 3.659, contra 3.420 no ano anterior, ou seja, 239 a mais.

Em Belo Horizonte, entre 2023 e 2024 houve uma queda de 15,13% dos casos de abuso sexual contra pessoas vulneráveis. No primeiro ano, foram 436 registros, e no segundo, 370. Já nos cinco primeiros meses de 2025, 151 ocorrências foram registradas pelas polícias Militar e Civil.

Para Thalita Arcanjo, o estupro de vulnerável de crianças e adolecentes pode ser prevenido com orientação. Ela acredita que, principalmente em casos que os envolvidos mantêm alguma relação amorosa, tanto meninos quanto meninas devem ser educados para que saibam que qualquer tipo de relação sexual é crime. “Criança não deve namorar de forma alguma. Agora, se acontecer, os pais devem acolher, supervisionar e orientar a situação para indicar que eles podem ser responsabilizados pela relação”.

Gravidez de risco

Todo ano, durante a primeira semana de fevereiro, o Ministério da Saúde e as secretarias estaduais da área promovem a Semana Nacional de Prevenção da Gravidez na Adolescência. O evento busca mobilizar diferentes setores governamentais para a implementação de ações e políticas públicas eficazes para a redução da gravidez na adolescência e promoção da saúde sexual e reprodutiva dos jovens no país.

A presidente da Associação de Ginecologistas e Obstetras de Minas Gerais (Sogimig), Inessa Beraldo, explica que uma gestação durante a infância e adolescência implica maior risco de complicações como pré-eclâmpsia, anemia e depressão pós-parto. Além disso, a médica afirma que há grande possibilidade de haver uma evolução para o aborto espontâneo e a morte materna. Em relação ao feto, a gestação precoce também acarreta riscos, uma vez que são grandes as possibilidades de parto prematuro, baixo peso e complicações ao longo da infância.

Segundo a família da garota warao que morreu em Betim, a menina só descobriu que estava grávida aos seis meses de gestação. Mesmo depois, ela e a família não procuraram o sistema de saúde para iniciar o pré-natal. Ao Estado de Minas, Flávia Gomes, uma amiga dos indígenas da comunidade de origem venezuelana, contou que todos foram pegos de surpresa, e a menina só fez um teste de gravidez depois de muita insistência da mãe. Ela ainda afirmou que ninguém da comunidade desconfiou, já que a criança era “encorpada”. “Quando o hospital comunicou que teria que retirar o bebê, o pai da Dorca se recusou (num primeiro momento) a aceitar por achar que ela estaria com dois meses”, disse.

Segundo Inessa, independentemente da idade, quando a mulher descobre que está grávida é imprescindível procurar uma unidade de saúde para iniciar o pré-natal. Ela explica que o momento é importante para identificar riscos e entender quais medidas de prevenção são essenciais para a gestante. Para a médica, para além dos riscos físicos e psicológicos, uma gravidez durante a infância e adolescência também gera impactos sociais. “Muitas vezes, as gestações acabam causando o abandono escolar e dificultam a inserção dessas mulheres no mercado de trabalho, perpetuando esses ciclos de pobreza”. 

Estupro de vulnerável

O crime de estupro contra vulnerável está previsto no artigo 217-A do Código Penal Brasileiro. O texto veda a prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos, sob pena de reclusão de 8 a 15 anos. O parágrafo 1º do mesmo artigo classifica também com vulnerável qualquer pessoa que não tenha o necessário discernimento para a prática do ato, devido a enfermidade ou deficiência mental, ou que por algum motivo não possa se defender. Se da consulta resulta lesão corporal de natureza grave, a pena sobe para 10 a 20 anos de reclusão. E no caso de provocar a morte da vítima, a condenação salta de 12 a 30 anos de prisão. Para denunciar, ligue 180. Em casos de emergência, ligue 190.