Secretaria de Estado de Direitos Humanos amplia discussões sobre o tema e promove atividades de conscientização junto à população. Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo é celebrado neste domingo (28/1)
Em pleno Século XXI é possível escutar o tilintar de correntes imaginárias que aprisionam milhares de pessoas a condições de trabalho degradantes. Foi o que aconteceu com João Paulo (*), 20 anos. Há dois anos, ele deixou sua cidade natal, a 560 quilômetros de Belo Horizonte, para trabalhar em uma empresa de alimentos na capital. O sonho de juntar dinheiro para construir a casa própria, porém, deu lugar a um pesadelo.
“Trabalhava de 18h às 6h, sem intervalos. Não podia lanchar. Uma vez por semana tinha que trabalhar de 10h às 6h do outro dia. Morava em um lugar pequeno, com cheiro de coisa velha. Não tinha liberdade nem para conversar com minha família”, conta.
Graças a uma denúncia anônima junto ao Ministério Público do Trabalho, João Paulo deixou o “cativeiro” e retornou para a casa dos pais. A experiência, porém, deixou marcas. “Tenho medo de voltar à cidade, de passar por tudo isso de novo, de ser assassinado. Eu só queria ter uma vida normal”, diz.
A fim de impedir que histórias como a de João Paulo aconteçam, o Governo de Minas Gerais, por meio da Secretaria de Estado de Direitos Humanos (Sedpac), tem intensificado ações e criado políticas públicas para erradicar o trabalho análogo ao escravo.
Uma das frentes de atuação é a conscientização da população quanto à necessidade de repudiar e denunciar esse tipo de prática. Esta foi uma das razões da criação do Comitê Estadual de Atenção ao Migrante, Refugiado e Apátrida, Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Erradicação do Trabalho Escravo (Comitrate).
“O trabalhador precisa estar coberto por uma rede de proteção. Foi com esse intuito que criamos o Comitrate”, afirma o secretário de Estado de Direitos Humanos, Nilmário Miranda.
Escravidão contemporânea
Um dos pontos principais da atual discussão é a diferenciação entre a escravidão contemporânea e a existente no período colonial.
“Hoje, não há mais senzalas, mas alguns alojamentos oferecidos pelos empregadores não têm condições mínimas de higiene. A mão-de-obra é barata e descartável e, por isso, o lucro é alto. Há casos tanto no meio rural quanto no urbano”, salienta Ana Paula Giberti, coordenadora da Política Estadual de Atenção ao Migrante, Refugiado e Apátrida, Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e Erradicação do Trabalho Escravo da Sedpac.
Desde sua criação, em 2016, o Comitrate promoveu várias discussões sobre o tema, além de campanhas de conscientização, seminários, rodas de conversa, congressos, oficinas e caravanas em municípios dos 17 territórios de desenvolvimento do estado.
Este ano, o comitê está aprofundando ainda mais as discussões, tendo em vista as mudanças na legislação. “A reforma trabalhista vai de encontro à longa história de avanços e conquistas do trabalhador no Brasil. Há uma grande preocupação com a precarização do trabalho”, frisa José Francisco da Silva, subsecretário de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos e coordenador do Comitrate.
A Sedpac também vai divulgar a Pesquisa e Diagnóstico dos Migrantes no Estado de Minas Gerais, que traça um panorama sobre o fenômeno migratório no território e identifica os traços de violação de Direitos Humanos, como a incidência de trabalho escravo e tráfico de pessoas, dentre outros problemas associados à questão.
Conscientização
De acordo com Ana Paula Giberti, outro objetivo do comitê é conscientizar e punir o empregador adepto dessas práticas. “Muitas vezes, buscando maior lucratividade, o empresário economiza justamente na mão-de-obra, ignorando os direitos fundamentais dos trabalhadores”, pontua.
O apoio da população é considerado fundamental. “A sociedade precisa entender o que é a escravidão contemporânea para denunciá-la. Outro ponto importante é fazer uma reflexão antes de consumir um produto, buscando conhecer sua procedência”, alerta Ana Paula.
Trabalho em rede
Um dos diferenciais do Comitrate é o trabalho em rede, que conta com a participação da sociedade civil e de órgãos como o Ministério do Trabalho (MTE), a Polícia Federal (PF), o Ministério Público do Trabalho (MPT), o Ministério Público Federal (MPF), o Tribunal Regional do Trabalho (TRT), o Tribunal Regional Federal (TRF), entre outros.
“As parcerias são de suma importância para a elaboração de políticas públicas. Além de resgatar esse trabalhador, é preciso promover sua reinclusão social e profissional, a fim de prevenir seu retorno à superexploração, quebrando o ciclo de pobreza. A vulnerabilidade social ajuda a impulsionar a escravidão contemporânea”, explica José Francisco da Silva.
Apoio às vítimas
As vítimas de trabalho escravo podem buscar auxílio no Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, Trabalho Escravo e Atenção ao Migrante, Refugiado e Apátrida da Casa de Direitos Humanos.
"O atendimento é presencial. O cidadão pode fazer denúncias e recebe orientações e encaminhamento para a rede de identificação que oferece proteção e acolhimento”, ressalta Letícia Palma, diretora de Defesa e Reparação em Direitos Humanos da Sedpac.
Outro local que oferece apoio a esses trabalhadores é Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da UFMG, que também integra o Comitrate. O espaço fornece assistência jurídica e judiciária gratuita às vítimas.
“Os alunos são responsáveis pelo atendimento e identificação das possíveis violações de direito, buscando soluções jurídicas viáveis para garantir a efetivação do direito do cidadão”, frisa o juiz federal Carlos Haddad, um dos diretores da Clínica.
Dados
Segundo o coordenador do Projeto de Combate ao Trabalho Escravo da Superintendência Regional do Ministério do Trabalho em Minas Gerais, Marcelo Gonçalves Campos, as ações conjuntas realizadas em Minas Gerais têm ajudado a desvendar um número cada vez maior de pessoas trabalhando em condições semelhantes às da escravidão.
“Minas é o estado recordista de ações de resgate e fiscalização. De 2012 a 2018, foram identificadas 2.825 pessoas em situação de trabalho escravo, 54 delas em janeiro deste ano”, destaca. Para Campos, o cenário de crise econômica no Brasil tende a contribuir para o aumento do número de casos de trabalho escravo contemporâneo em todo o país.
“Muitas pessoas saem do interior à procura de trabalho nos centros urbanos e acabam aceitando qualquer tipo de emprego. Boa parte das empresas utiliza intermediários, mais conhecidos como ‘gatos’, para contratar esses trabalhadores, que são ludibriados com a promessa de bons salários”, alerta Campos.
Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo
O 28 de janeiro é celebrado no Brasil como o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. A data foi escolhida em homenagem aos auditores-fiscais do Trabalho Eratóstenes de Almeida, João Batista Soares Lage e Nelson José da Silva, e ao motorista Ailton Pereira de Oliveira, assassinados quando investigavam denúncias de trabalho escravo em Unaí, Território Noroeste. Até hoje, o caso permanece sem solução.
Para marcar a data, a Sedpac promoverá, no próximo dia 31, Ação Conjunta pelo Combate ao Trabalho Análogo ao Escravo Contemporâneo e ato alusivo à chacina de Unaí. O evento será realizado em Belo Horizonte, às 14 horas, na Rua Tupinambás 179, Centro.
Na oportunidade será lançado o livro "Trabalho escravo: entre os achados da fiscalização e as respostas judiciais", produzido pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da UFMG. A publicação foi feita com base nos relatórios das fiscalizações feitas pelo Ministério do Trabalho entre 2004 e 2017 e traz informações sobre o resultado dessas ações.
(*) Nome fictício