Governo do Estado aprimora a educação em comunidades remanescentes de quilombos ao inserir e dar preferência à designação de profissionais e auxiliares quilombolas

Na pequena comunidade com ares de interior, as casas se organizam no entorno da Igreja de Nossa Senhora do Rosário - padroeira das quase 400 famílias que ali residem - e da rua principal, uma das únicas asfaltadas. Localizado na área rural de Santa Luzia, Território Metropolitano, o quilombo de Pinhões, batizado devido à abundância de árvores de pinhão no local, teve sua história iniciada no Século 18 e recebeu a certificação pela Fundação Palmares como comunidade quilombola no ano passado.

E é justamente o orgulho em ser reconhecida como remanescente quilombola que a Escola Estadual Padre João de Santo Antônio, uma das 29 escolas quilombolas do Estado (e a única escola pública dentro da comunidade), trabalha com os alunos. Eles começam desde os seis anos de idade a estudar o tema e sua importância histórica, conhecendo locais importantes da comunidade e seus significados.

“O MEC nos reconheceu como escola quilombola em 2011, mas o tema não era trabalhado porque não éramos orientados a isso e a comunidade mesmo ainda não tinha sido reconhecida. Os meninos não queriam trabalhar com isso. Para eles, ser descendentes de negros era questão de vergonha”, conta a diretora da escola, Paola Catharine Cordeiro Silva.

“Esse olhar diferenciado para a escola quilombola veio com a professora Macaé. Quando ela entrou na Secretaria de Educação, pudemos participar de cursos específicos, nos quais levamos professores, supervisor e até auxiliares. Foi muito bom, porque trocamos experiências e percebemos, inclusive, que fazíamos muita coisa errada. Passamos a trabalhar o tema o ano inteiro, e não só no Dia da Consciência Negra. E hoje os alunos já têm esse sentimento de pertencimento, de se entenderem como quilombolas”, completa Paola.

A educação escolar quilombola hoje comemora os avanços, mas começou a ter uma nuance diferenciada em Minas Gerais apenas em 2015, a partir da elaboração do primeiro diagnóstico institucional específico e da criação do Grupo de Trabalho da Educação Quilombola (GTEQ), pela Secretaria de Estado de Educação (SEE-MG).

No ano seguinte, a SEE publicou a Resolução 2945/16, que institui processo de escolha de servidores preferencialmente quilombolas para os cargos de diretor e vice-diretor nas escolas estaduais. Em 2017, foram publicadas, ainda, as Diretrizes Estaduais para a Educação Escolar Quilombola.

“Em janeiro deste ano, implementamos processo específico de designação para as escolas quilombolas, com a Resolução 3677/18, que prioriza a contratação de quilombolas para o cargo de professor e de auxiliares – cantineiras, faxineiras, secretárias, entre outros”, explica a superintendente de Modalidades e Temáticas Especiais de Ensino da SEE, Iara Pires Viana.

Com essa iniciativa, inédita no Estado, houve aumento de 90% no quadro de profissionais de origem quilombola entre os auxiliares de serviço, e de 50% entre os professores estaduais.

“Conversamos com as lideranças quilombolas, e percebemos que escolas gestadas por pessoas das próprias comunidades e tendo em seu quadro professores, servidores, assistentes também quilombolas poderia, sim, fazer muita diferença para o avanço da educação escolar quilombola. Foram muitos anos de invisibilidade, de negação de direitos e identidades para essas pessoas e para as escolas”, relata Iara.

“Essas resoluções mudam significativamente a educação escolar quilombola no Estado, pois ampliam o que se chama de educação específica. Esse entendimento da especificidade de cada quilombo devolve para essas comunidades tradicionais o direito e o lugar de fala de cada uma”, completa.

"Percebemos que escolas gestadas por pessoas das próprias comunidades e tendo em seu quadro professores, servidores, assistentes também quilombolas poderia, sim, fazer muita diferença para o avanço da educação escolar quilombola. Foram muitos anos de invisibilidade, de negação de direitos e identidades para essas pessoas e para as escolas”

Iara Viana, superintendente de Modalidades e Temáticas Especiais de Ensino da SEE

Na Escola Estadual Padre João de Santo Antônio, em Pinhões, após as resoluções, hoje são cinco professores quilombolas contratados – antes, eram três. E, desde o início deste ano letivo, todos os seis funcionários auxiliares (ATB e ASB) são da comunidade. Antes, apenas um era quilombola.

A aluna Tamara Leandra Celestino, 18 anos, conta que descobriu ser quilombola na escola. “Isso nunca foi abordado em casa. E é bem legal porque, ao invés de nossos pais passarem isso para a gente, é a gente que está passando para eles”, diz. “Quando eu fiquei sabendo que aqui era uma comunidade eu tive receio em aceitar, porque eu já era grande e não entendia muito do assunto. Hoje, se me perguntam de onde sou, eu já falo que sou de Pinhões, uma comunidade quilombola que fica em Santa Luzia”, completa. Ouça mais o depoimento da Tamara aqui.

Na mão contrária, Maria Paula Gonçalves, 17 anos, recebeu os primeiros ensinamentos sobre Pinhões com o pai, que é neto de escravos. “Tenho sobrenome de escravo, pelo menos é o que meu pai fala. Ele conta como foi a divisão para criar Pinhões, quais eram as fazendas que tinham escravos. Quais são os moradores daqui que têm algum parente que era escravo também... Ser quilombola, para mim, é fazer parte da história, porque a comunidade surgiu por causa dos escravos. Eles que vieram para cá e construíram as primeiras casas, para cuidar da terra dos seus senhores”, afirma.

"Hoje, se me perguntam de onde sou, eu já falo que sou de Pinhões, uma comunidade quilombola que fica em Santa Luzia”

Tamara Celestino, 18 anos, estudante

Identidade

Como remanescentes dos antigos quilombos, os moradores das comunidades quilombolas precisam lidar, ainda, com o preconceito. A estudante Núbhia Helen Martins da Conceição, 18 anos, conta que sempre precisou enfrentar o racismo. “Desde pequena ouvia piadinhas, chegava em casa e chorava. E eu tinha preconceito comigo mesma, e isso foi só agora que descobri. A gente tem mais quilombola aqui na escola, fala desse assunto, vai entendendo mais as coisas, sabendo a origem da gente”, diz. Ouça mais.

Para tratar do tema dentro da escola, Núbhia e os colegas fizeram um vídeo sobre identidade negra. Veja aqui.

"Ser quilombola, para mim, é fazer parte da história, porque a comunidade surgiu por causa dos escravos. Eles que vieram para cá e construíram as primeiras casas, para cuidar da terra dos seus senhores”

Maria Gonçalves, 17 anos, estudante

Qualificação e oportunidade

Outro importante avanço possibilitado por essas mudanças foi a abertura de oportunidades de emprego para os moradores dentro da própria comunidade. É o caso da Maria Valdete Costa, 52 anos, nascida em Pinhões. Ela nunca havia trabalhado na comunidade, e precisava se deslocar cerca de 100 quilômetros diariamente, entre ida e volta, para trabalhar como babá. Para isso, acordava às quatro horas da madrugada e pegava oito ônibus todos os dias, o que também significava um rombo de quase R$ 600 no salário.

“Eu precisava trabalhar, e como não tinha oportunidades perto eu tive que ir para longe. Sempre trabalhei longe. Quando me falaram da vaga na escola e que eu tinha direito por ser quilombola, me inscrevi, mas nem fiquei tão esperançosa. E eu fui classificada, né? Sempre tive vontade de trabalhar aqui, mas a gente sabia que era complicado, burocrático. Parece um sonho que eu consegui. Agora eu atravesso a rua e chego ao trabalho”, comemora. Valdete está há três meses na Escola Estadual em Pinhões, onde trabalha como cantineira.

Observa-se, ainda, um aumento da busca por qualificação profissional entre os quilombolas. “Logo no início da gestão, tínhamos um levantamento preliminar que indicava uma baixa escolarização nas comunidades. E o que a gente percebe? Que, quando a legislação é alterada, há um avanço grande no sentido de alcançar esses lugares. Temos um número crescente de quilombolas procurando o ensino médio de novo, adentrando as universidades”, destaca a superintendente de Modalidades e Temáticas Especiais de Ensino da SEE, Iara Pires Viana.

“Quando possibilitamos a entrada dessa população para a gestão ou para o quadro funcional de uma escola, estamos invertendo o que a história, há muito tempo, nos induz a acreditar: que essa população não tem competência, não tem habilidades para assumir determinados postos. Ao inverter isso, a gente inverte também uma lógica social, e modificamos, inclusive economicamente, a estrutura e a organização destas comunidades”, frisa Iara.

Escola premiada

Há 48 anos, quando a comunidade quilombola de Caititu do Meio, no município de Berilo (Território Médio e Baixo Jequitinhonha), começava a crescer, foi criada uma escola rural na sala da casa de uma professora voluntária. Posteriormente, a instituição foi batizada Escola Estadual Nossa Senhora Aparecida, e hoje educa 93 alunos do 1º ao 9º ano do ensino fundamental.

“São crianças e jovens oriundos de aproximadamente 40 famílias descendentes de afro-brasileiros, filhos de pais semianalfabetos ou analfabetos, produtores rurais com baixo poder aquisitivo”, relata a diretora Alaíde Amaral.

Com gestão quilombola, a escola se mantém como avançada há três anos consecutivos nas avaliações de ensino externas, fato inédito em Minas Gerais. “Nossos alunos são estimulados, diariamente, a se organizarem em pequenos grupos de estudos e debates em sala de aula para estudar. A escola voltou seu trabalho educativo com maior intensidade para o resgate e reconhecimento do povo afrodescendente”, diz Alaíde, que está na escola há 20 anos.

“A mudança de hábitos para aceitação, principalmente da cor da pele, foi gradativa. Aos poucos os alunos foram se sentindo parte da história. Hoje são orgulhosos e não medem esforços para mostrar sua identidade. Procuramos manter viva a história em nosso ambiente de trabalho”, destaca.