Em comunidade de Porto Velho, adultos e crianças tiram seu sustento do lixã
Diego Cristo de Araújo, 12, volta da escola por volta do meio dia. Assim que chega em casa ele almoça e já começa a se preparar. Calça galochas plásticas e veste calça, um casaco antigo e luvas grossas. Então o jovem, que sonha em se alistar no Exército e ser soldado, caminha alguns minutos por ruas de terra até chegar ao trabalho: o lixão da Vila Princesa. O local recebe todos os dejetos dos pouco mais de 500.000 habitantes de Porto Velho – cerca de 450 toneladas por dia. Lá, em meio um enxame de moscas e abutres, e sob calor escaldante e a humidade amazônica, Diego fica até as 17h revirando sacos de lixo em busca de garrafas PET, cobre, alumínio, e outros materiais valiosos no mercado da reciclagem. “Já achei até um revólver 38”, afirma.
Cerca de 400 famílias moram no local, a pouco mais de 15 km do centro da capital rondoniense e às margens da BR-364. Na Vila Princesa não existem ruas asfaltadas, saneamento básico ou água encanada. As casas são de madeira, e a imensa maioria dos moradores depende do lixão para sobreviver. Aliás, a própria origem da comunidade está ligada ao lixão: pelo que contam, os primeiros catadores começaram a chegar ao local no final dos anos de 1990, após o declínio de alguns garimpos da região. Não se sabe quantas crianças como Diego trabalham no local insalubre. Durante uma manhã a reportagem do EL PAÍS viu ao menos 20 jovens aparentando menos de 18 anos se dirigindo ao lixão. A entrada do local é monitorada por guardas da prefeitura, que não autorizaram o acesso da reportagem. No entanto, crianças – algumas de chinelo e sem equipamento de segurança nenhum – podiam ir e vir livremente.
Em um mês bom, Diego consegue levantar até 100 reais, usados para ajudar na renda da pequena casa que divide com a avó e um tio. Além da necessidade financeira, outro motivo o levou a este trabalho: “Meus pais me mandaram catar reciclável no lixão porque acham que se eu não for vou ficar fumando maconha na rua”. Os primeiros dias na função não foram fáceis. “Eu não sabia nem o que era garrafa PET. E sofria muito com o calor e as moscas. Depois acostumei. A gente acostuma, né?”.
O sustento de Diego e dos moradores da Vila, no entanto, pode estar em xeque. Segundo a Política Nacional de Resíduos Sólidos, aprovada em 2010, todos os lixões do país devem ser fechados até 31 de julho deste ano. Na Vila Princesa, isso teria um impacto devastador na economia local. “Se fechar ficamos sem sustento”, diz Solange Apurinã, 45. Apesar de não desejar “essa vida” de catadora “para ninguém”, a amazonense teme pelo que o futuro reserva. Sem instrução formal – “sei escrever meu nome só” – a ex-agricultora depende dos pouco mais de 100 reais que consegue no lixão todo mês para sobreviver. “Dependo da água da chuva pra lavar louça e tomar banho. Para beber busco no poço do colégio”, diz. Ela lamenta não contar com ajuda dos familiares na coleta dos recicláveis: “Eu trabalho devagar, às vezes não consigo pegar muito material, tem muita gente”.
Mas não são apenas os materiais recicláveis e objetos valiosos que atraem os catadores do lixão. Duas vezes por semana o “caminhão do Gonçalves”, como é conhecido, vai ao local para descarregar carne e verduras estragadas. “Todo mundo espera ansioso o Gonçalves”, diz Solange. Ela diz já ter ficado doente com os alimentos recolhidos, mas afirma que alguns itens, “como manteiga, quase não estragam”.
Raimundo Roberto da Silva, se considera “um dos fundadores” da Vila Princesa. Sem conseguir precisar a idade exata, o idoso recorda que quando chegou ao local “no final dos anos noventa não tinha nada aqui”. Ele e outros pioneiros então construíram “barracos de lona para dormir”. A história de Raimundo se confunde com a história da região, às margens do Rio Madeira. Ele diz ter sido um dos soldados da borracha, nome dado aos trabalhadores que foram enviados pelo Governo para os seringais amazônicos à partir dos anos de 1945. Encerrado o ciclo da borracha, Raimundo foi trabalhar nos garimpos da região. Quando o ouro acabou, sobrou o lixo. Coberto de moscas após uma manhã inteira escavando em busca das “pepitas” do lixão, ele compara os ofícios: “Como no garimpo, tem gente que faz a vida aqui. Acha dinheiro e até TV”. Ele mesmo exibe com orgulho nos dedos as quatro alianças que encontrou no lixo.
A elite do lixão
Na Vila Princesa existem dois tipos de classes de trabalhadores no lixão. Os catadores e os revendedores. Enquanto os primeiros passam boa parte do dia em busca de recicláveis, os segundos compram estes materiais coletados e revendem para empresas no centro de Porto Velho. São uma espécie de elite composta por cerca de oito famílias que também vivem na Vila. Não se trata, no entanto, de um trabalho fácil. É preciso limpar, escovar, martelar, remover pregos e parafusos e desentortar tudo aquilo que será vendido na cidade.
Dielson Donato, 24, é um desses revendedores. Ele compra o quilo de alumínio e outros metais de valor por 3 reais e revende por 3,70. Ao lado da mãe e da irmã eles conseguem ter uma renda mensal de 3.800 reais. “Eu acho bom que fechem o lixão, desde que deem emprego para todos”, diz Dielson. De olho no futuro, ele se prepara fazendo curso de barbearia. “Quero sair daqui. Quero um emprego limpo, no ar condicionado. A vida aqui é muito sofrida”, afirma.
A reportagem questionou a prefeitura sobre o fechamento do lixão, a fiscalização do trabalho infantil no local e eventuais projetos de capacitação que sejam desenvolvidos no local, mas não obteve resposta.